­Eu, sujeito! Nós, coletivos. – José Eymard Loguercio

­Eu, sujeito! Nós, coletivos. – José Eymard Loguercio

José Eymard Loguercio

Advogado sindical, sócio fundador da LBS Advogados e Presidente do Instituto Lavoro. Mestre em Direito e Doutorando em Direitos Humanos e pela Universidade de Brasília. Especialista pela Universidade Castilha-La Mancha (UCLM).

Março de 1964! Ouvi, desde sempre, sobre os rumores daquele mês. O discurso de 13 de março e o desfecho do 31! Pai comerciante, mãe professora do estado de Minas. Uma pequena cidade, católica, que dista 35 km da cidade paulista mais próxima, Mococa. Estrada de terra. O que liga Minas a São Paulo. Estrada de terra e uma ponte. A ponte rodou. Não passa. Encravou. Vai chover. A estrada está que é um buraco só. Cuidado. A cidade tinha 3 escolas públicas: Coronel Lucas Magalhães, a escola de lata. Escola estadual Doutor Wenceslau Braz. Ensino primário até a 4ª série. Colégio Américo de Paiva. Ensino Fundamental e Médio. Wenceslau Braz até a 3ª. Série. Convivi com os colegas de todos os lugares. O recreio. O pátio de chão batido, as brincadeiras com todas as crianças. Crianças com lancheira e lanche ao lado de outras sem lanche e nem lancheira. Um embornal. Os cuidados da horta. A sopa do intervalo, nos dias mais frios. O café com leite, pão e carne moída, nos outros dias. Sopa de fubá com chicória. Achocolatado. A fila. O burburinho. Mudei para o colégio Américo de Paiva na 4ª. Série. Os rostos ficaram mais brancos. Mas, ainda assim, no ciclo até a 5ª série, se viam os colegas da área rural. As séries iam passando. Os rostos cada vez mais brancos e os colegas da área rural….sumiram! O progresso parece que ia chegar. O asfalto ligaria o sul de Minas a São Paulo. Ligou. Ainda nos anos 70, os desfiles cívicos. A fanfarra. As quermesses, as procissões. As festas juninas. Os bailinhos nas casas. O Minas clube. A praça de esporte. Sidney Magal, Gretchen, Jerry Adriany. O festival de música no cinema. O cinema. A sirene do cinema. Kung-fu, Mazzaropi, Dona Flor e seus dois maridos, Adele de Fátima. A rivalidade do carnaval – é Braz ou Belém? O bloco do Braguinha: os excluídos da festa de momo. Os monstros a aterrorizar a molecada. A maioria pretas, pretos e bichas. A rivalidade dos dois times de futebol – é Rádio ou América? A Rádio Progresso. A política local e nacional, o coronel, os coronéis. As personagens populares: quase todas elas negras a pedir esmolas; os amigados, os falidos, os poderosos. O preço do café. A Congada em Itamogi, a Folia de Reis em Monte Santo. As separações de casais. O silêncio perto das crianças. O circo, o globo da morte, o palhaço carequinha. A filha de boa família fugiu com o palhaço. A professora aposentada, que vivia sozinha, ia às missas todas as tardes, sumiu. Desapareceu para sempre. A alfaiataria, onde tudo se fica sabendo. A sorveteria, a cadeia, o vampiro. O vampiro. Os meninos gêmeos mortos na beira do trilho do trem; o trem. A professora de História que levava a turma, de trem, até São Sebastião do Paraíso. O prazer da prosa no ir e vir. A feira de ciências. Belo horizonte, escola mata-borrão. O mineirinho. Padre Donizete. Pagar promessa em Aparecida do Norte. A perua kombi, a lotação. Sai às 5 horas para São Paulo. São Paulo. Ah, São Paulo. Meu avô, sentado no alpendre fumando o seu cigarro no auge de seus 90 anos. Lia e repetia: Me-di-cci (pronunciado assim) é mau: – esse é mau! Eu não entendia bem o motivo. E a vida seguia. Esse é um país que vai pra frente, ô, ô, ô, ô, Ô. Eu te amo meu Brasil, eu te amo….me coração é verde, amarelo, branco azul anil. Meu pai tinha um homônimo. Diziam: um comunista. É o que se dizia! Não se sabia bem quem era. Sabia-se ser um jovem do sul. Sem parentesco. Pelo sim, pelo não, um salvo conduto. O documento guardo até hoje. A copa de 70. Mário Américo é da cidade. A copa e as copas, que festança. A partir do primeiro colegial, a divisão aumentava. Ou…os iguais iam ficando mais iguais. Estudar em Ribeirão Preto, em Campinas, em São Paulo. Belo Horizonte era mais longe. Iguais ou acima, na escala social, iam “para fora”. Educação em primeiro lugar. Campinas. A primeira escola particular. Campineiras e campineiros filhos de campineiras e de campineiros. Alguns, de boas famílias do interior. Bafejos democráticos rondavam o país. Aula de história. A professora meio hippie. Aula de história. O professor meio comunista. Aula de Geografia. A professora escorrega no preconceito. A sogra abrigava um jovem negro no porão. Uma alma caridosa. Cala a boca, Barbará. Cala a boca, Barbará. A prima, “sempre metida em política”: faz ciências sociais na Unicamp. O pau vai comer. Joga fora os panfletos. Dá descarga. Empresta o vaso sanitário do teu apartamento. A vizinha do 7º andar convida para jantar. Um professor vai estar presente. Paulo Freire. Não sei bem quem é. Já ouvi esse nome. Fico na dúvida. Venha. Estaremos só nós. O padre da pastoral Operária também. Pastoral Operária? Vou. Fui. A sinfônica de Campinas toca na praça. Benito Juarez. Um maestro. Projeto Pixinguinha. Tanta gente boa. Música da melhor qualidade. Boca livre. Cursinho. Severino, professor de literatura. Clarice Lispector. Lori e Ulisses. Clarice é definitiva. Direito? Será? Não era jornalismo? Não dá! O pai faliu. Acolhimento na casa da tia do melhor amigo e tudo vira uma nova família. Uma nova família! O banco. O café torrado e moído. As freguesas de sempre. O sorvete. Também vendo La Basque. O banco vende mais barato para os funcionários. Quem vai querer? Direito é muito chato. Prefiro as palestras da Professora Marilena Chaui na Unicamp. Lotado. Auditório lotado. Vamos para espaço maior: o refeitório enorme. Lotado. Marilena encanta. Voto útil. Votar. Democracia. O discurso competente. A SBPC. O campus. O burburinho. Um sebo. Uma livraria. Uma loja de disco. Um livrinho: O que é Direito. Professor de Brasília. Coleção primeiros passos. Dedicado a….Marilena Chaui. Compro. Leio. Me coloca em outro lugar. ENED. Roberto Lyra Filho vai estar lá. Vou. Niterói. Meu chefe foi camarada. Alguns dias de folga. Nem precisa contar ou anotar. Ajudei, no fim de semana, ele fazer a mudança da família para uma casa maior. Gente boa. Compensação bancária. Pega cheque. Conta cheque. Separa cheque. Soma cheque. Ônibus. Câmara de troca. Não bate. Deu erro. Soma de novo. Cuidado com a multa. Achou. Bateu. Volta. Separa. Soma. Coloca no escaninho. Carimbador maluco toca na rádio. Pluft plaft zoom, não vai a lugar nenhum. Meu colega de trabalho, boa gente. Estudante de economia na Unicamp. Dica. Trabalha mais devagar. Alguém pode desconfiar de que não precisam de dois. O pátio dos Leões. Os encontros. Os desencontros. ENED. Foi o máximo. A filha do Desembargador enrolada na bandeira na entrada do prédio (gótico?) …. deixa pra lá. Consegui uns livros. Direito e Avesso. Procuro mais nas livrarias, não. Surgiu um estágio no sindicato dos metalúrgicos. Vai lá. Vamos lá. Entrevista. Nada de resposta. Toda noite. Edna não tem resposta. Não tem. A Dra. Mayla não decidiu. Volta. Volta e volta…estão contratados. Pedido de demissão. Início de outra vida. Diretas já. Emenda Dante de Oliveira. Frustração. Passeata. Do Pátio dos Leões até o Centro de Convivência. O vice-reitor à frente. Dia seguinte, abertura de procedimento disciplinar. O Diretor não gostou. Arquivado. Pátio dos Leões. Um convite. Um encontro. O encontro. A vida vai mudar de novo. Eu ainda não sabia. Diretas já. Anhangabaú. Nunca vi tanta gente na vida. Sobe a brigadeiro. Brigadeiro. Vai passar? Vai passar. Mas antes, uma coqueteleira nos leva à Lyra Filho. Mudou-se para São Paulo. Um convite. Encontros dominicais. A aula. Os papos. O pernil assado. Os croissants. Os filmes. Os livros e livros e livros de um apartamento biblioteca. A palestra na PUC-SP. A gafe. Um curso sendo gestado. A eleição do Suplicy. Não? Ganhou o Jânio. O livro sendo gestado. Desordem e Processo. Comemorar os 60 anos “do velho”. Velho? A aula magna no salão da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Um retorno. Novos tempos. O telefone na véspera. Tatuí. O velho morreu. O velho? A morte. Na véspera. São Paulo. Começa a avisar as pessoas. Marilena chega na madrugada. Abro a porta. Não sei se choro ou se sorrio. Abraço. Forte. Como se fôssemos amigos de longa data. Professor José Eduardo Faria chega. Senta solene. Sentamos todos. Conta suas histórias com Lyra Filho. Outros são avisados, mas o enterro será em Curitiba. Melhor ir direto, Professor José Geraldo! A mãe chega para a despedida. O filho chega. O corpo sai. Saímos todos. Fim de um ciclo. Começo de outro. A preparação para lançar o livro….na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. A aula que não houve. A homenagem é póstuma. Segue. Tudo segue. O encontro com Paulo Freire no Nobrinho. Um encontro marcado somente com a turma do Direito e Avesso. Ensino jurídico. A direção não queria saber de Paulo Freire. Nós, queríamos. Voz serena. Eles, meus jovens, fazem a parte deles. Nós, vocês, a nossa. Sociedade de classes. Já ouviram falar? É assim quando se defendem interesses e direitos de minorias, espoliados e oprimidos. E é assim. Direito é luta. Reclamamos do positivismo. Da alienação. Em que ano da Faculdade estão? Dizemos. Ele diz: e vocês estão aqui! Nem tudo está perdido. Nem tudo estava perdido. Professor José Eduardo Faria. Debate. Nobrinho. Duelo de titãs. Um telefonema. Foi cancelado. Como foi cancelado? Ligaram de São Paulo. Como ligaram de São Paulo? O professor Faria está na estrada. Tarde demais. O diretor da faculdade liberou o Nobrinho para outra atividade. Cancelado. Como assim? Não tem debate. Tem debate. Corre. Arruma sala. O vice-reitor aceita participar. Alguns professores aceitam participar. O vice-diretor, um pouco contrariado, aceita participar. Sala lotada. Dia seguinte: novo procedimento administrativo? Não vai rolar. Não precisa. Deixa como está. Vai passar. Vai passar. Alaor Caffé Alves no Nobrinho. Quem convidou? Não pode. Pode. Procedimento administrativo. Quem convidou? Nós. Arquiva. Paulo Freire. Direito é luta. As greves. O camburão. Demissão de 200 trabalhadores por justa causa. Participaram da greve. O telefone toca. É o TRT marcando audiência da greve para as 14. São Paulo. Mas são 10 horas! Se vira. Greve ilegal por pressuposto. Substabelecimento. Substabelecimento. Os trabalhadores gritam no salão. Querem resolver suas vidas. A Justiça do Trabalho não lhes dá resposta. Acordo. Acordo para seguir a vida. Segue. Rodoviários. CCTC. Empresa de transporte urbano. Demite por justa causa. Vai pra justiça pedir seus direitos! Faz acordo para não passar fome. O processo demora, doutor? A juíza marca a primeira audiência. Não dá acordo. Marca a segunda só para ouvir as partes. Excelência a empresa sempre dispensa. Vamos ao que interessa. Audiência. A empresa dispensa. Outra audiência. Doutor, o processo demora? Sentença daqui um ano. Recorre. E recorre. E volta. E calcula. E intima. E discorda. E, doutor, o processo demora? A greve. As escolas pararam. Vitória. Demissão. As professoras demitidas. A greve. Os servidores municipais. Arapuca. Audiência no Ministério Público do Trabalho. O Presidente do Sindicato. Não veio. A Federal a postos. Prontos para levar desobediência. Frustrada. A negociação. O fim. A vitória. A vida segue. O escritório. A rodoviária. O prédio. A máquina elétrica usada. O padre vendeu. O Tribunal. Novos tempos. Planos econômicos. Inflação. Greves. Constituição nova. Novo sindicalismo. Um novo tempo apesar dos perigos. Acreditamos que o mundo será melhor. Vai começar uma nova vida. Viver e não ter a vergonha de ser feliz. É bonita. É bonita e é bonita. E será e será. Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar é bonita é bonita é bonita. Vai passar. Vai passar. E seguiu e seguiu e segue e segue. Sujeitos da história. Somos todos sujeitos da história. Queiramos ou não. É melhor querer!!!!