A desumanização do trabalho e a realidade brasileira

A desumanização do trabalho e a realidade brasileira

Denis Maracci Gimenez

Professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) e pesquisador do CESIT/IE/UNICAMP.

 

O espírito do nosso tempo é profundamente marcado pela desumanização do trabalho. Sob o regime do capital, desvalorizar o trabalho ao tornar desumano o fazer humano. Em dimensão mais ampla, a desvalorização do trabalho na Antiguidade impunha-se por sua associação à reprodução da vida ordinária, em que trabalho e família aproximavam o homem da vida animal. No mundo cristão, a desvalorização do trabalho é associada à punição. Trabalho como castigo. O trabalho na Modernidade tem sentido diverso. No Renascimento, a valorização do trabalho dá-se por sua dimensão criativa. O trabalho como criação, expresso na riqueza da subjetividade das artes, da literatura, do pensamento. Manifestações de formas superiores do fazer humano. Sob o protestantismo ascético, a valorização do trabalho toma outro caminho, por sua dimensão transcendente. De uma forma ou de outra, nossa vida moderna nasce marcada pela valorização do trabalho.

Como bem caracteriza Max Weber, o capitalismo não exclui isso, mas segue dissolvendo os pressupostos éticos desse movimento de valorização do trabalho. Com o declínio da ética protestante e a ascensão do espírito do capitalismo, a “morte de Deus” impõe ao trabalho a perda de qualquer transcendência. O trabalho como criação sucumbe a dissolução de pressupostos éticos do fazer humano. Prevalece assim o “trabalho para ganhar a vida”, cujo símbolo maior para Weber é o “profissional”, que denomina como aqueles “especialistas sem espírito, gozadores sem coração”, expressão peculiar maior da mecanização da vida e de um tipo de racionalização da conduta sem nenhum conteúdo ético[1].

O mesmo desenvolvimento capitalista, que é intensivo e permite produzir mais com menos, ampliando a potência da força de trabalho diante dos imperativos da natureza, impõe progressiva perda de sentido ao fazer humano. Ao tempo em que o progresso técnico é o motor da expansão e do aperfeiçoamento das forças produtivas, tornando o trabalho humano mais produtivo, amplia-se o estranhamento entre aquele que realiza o trabalho e sua criação. O trabalho torna-se uma existência externa ao trabalhador, uma potência autônoma que lhe defronta hostil e estranha, em que sua objetivação transforma o fazer humano em meio para satisfazer necessidades fora dele. De forma clara, o trabalho é reduzido à mera condição de meio para “ganhar a vida” no mercado. “Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”[2].

Nas páginas iniciais de Formação do Brasil Contemporâneo, ao buscar o sentido da colonização no novo mundo, Caio Prado Junior nos diz que “todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‘sentido’” e que nós como povo nascemos para fornecer açúcar, tabaco, ouro, diamantes, algodão, café, como engrenagem do mercantilismo europeu[3]. Nada mais característico da valorização do mundo das coisas e da desvalorização do mundo dos homens, em um empreendimento mercantil que consagrou a grande propriedade e particularmente a escravidão, limite da compulsoriedade do trabalho, como forma de exploração.

Gilberto Freyre, em sua introdução à segunda edição da obra de Joaquim Nabuco, Minha Formação, descreve o ímpeto de reformador social do filho de um dos homens mais influentes do Império, que, desde cedo, demonstrara “interesse pelo escravo”. Caracteriza com precisão tal ímpeto, nas palavras do próprio Nabuco: “Acabar com a escravidão não basta (…) é preciso destruir a obra da escravidão”, que, de resto, como lembra Freyre, produziu o próprio Joaquim Nabuco. Para ele, em sua fase de reformador social, a abolição da escravidão era apenas o primeiro passo para a organização do trabalho nacional e a consolidação da civilização brasileira sobre bases democráticas, que necessariamente deveria ser seguido pela superação de “instituições auxiliares da escravidão”, particularmente o monopólio territorial[4].

Em um de seus mais enfáticos discursos em 1884, quando já desenganado das reformas políticas, Nabuco pergunta: “O que é o operário? Nada. O que virá ele a ser? Tudo (…) o futuro, a expansão, o crescimento do Brasil”, o trabalho – ou o trabalhador, libertado, levantado e protegido “em toda a extensão do país, sem diferença de raças nem de ofícios” [5]. As páginas de Minha Formação, assim como a trajetória da vida de Nabuco, trazem à baila um reformador social radical. Portanto, alguém que indicava um futuro diferente para aquele país fundado sobre a ordem escravista. Nabuco falava da premência de reformas que encaminhassem uma questão crucial para a construção de uma ordem social moderna no Brasil, que, por Florestan Fernandes, foi tratada de maneira notável como a integração do negro na sociedade de classes[6].

O reformismo social, nascido na segunda metade do século XIX, expressa os primeiros passos daquilo que vamos assistir nos cinquenta anos que seguem à Revolução de 1930. Apesar do atraso econômico e de um padrão de organização social arcaico, é necessário observar que havia em curso no país, pelo menos desde 1870, simultaneamente, um movimento de moralização da sociedade, de surgimento de uma ética fundada nos valores modernos, referentes, no plano individual, aos cuidados e ao aperfeiçoamento pessoal, assim como, no plano social, à ordenação da sociedade, assentada sobre a igualdade, a educação democrática, a participação política e a autonomia do cidadão, cujas matrizes assentavam-se na luta abolicionista, no catolicismo reformado sob influência da Encíclica Rerum Novarum, no trabalhismo de inspiração positivista, no socialismo, no comunismo e no próprio solidarismo cristão[7].

Esse processo de “moralização”, em curso desde o último quartel do século XIX, materializou-se politicamente na Revolução de 1930 e na ascensão de Vargas ao poder. Não é difícil identificar o ímpeto reformador que acendeu ao poder em outubro de 1930. Uma questão aguda para Vargas, desde o início de seu primeiro governo, consistia em como se diferenciar do período que o antecedeu, como diferenciar-se da República Velha. Em seu discurso, a “questão social” e seu encaminhamento são centrais. Conforme bem observado por Pedro Cezar Dutra Fonseca, ao pregar a necessidade da legislação trabalhista, Vargas recorrera a argumentos históricos. Num de seus discursos, afirmava o Presidente que o governo anterior não se preocupara com a questão social por estar fechado “num círculo de vantagens restritas”, que fez com que o poder público se tornasse “alheio e impermeável às exigências sociais e econômicas da nação. Noutro, Vargas, ao falar sobre o fim da escravidão, afirma que a desorganização do mercado de trabalho por ela provocada não foi solucionada pelos governos republicanos. Dessa forma, a seu juízo, tornava-se necessário preencher o hiato deixado por quarenta anos de República Velha, organizando o trabalho livre sobre “bases racionais”[8].

Essa forma própria de valorização do trabalho nacional nas condições do nosso subdesenvolvimento e de profundas heranças históricas perpassou a Era Vargas e o entusiasmo dos anos JK. Nos quadros do capitalismo periférico, sucumbiu frente ao espírito da globalização.

Sob o regime do capital, desvaloriza-se o trabalho. Nos quadros da dinâmica do capitalismo contemporâneo, de acirramento da concorrência internacional, de uma nova revolução tecnoprodutiva e da reconfiguração do padrão de competitividade entre as nações, que promoveu uma nova divisão internacional do trabalho, assim como das características do mercado de trabalho brasileiro, fundado em baixos salários, estruturalmente desorganizado, assiste-se à radical desvalorização do trabalho nacional.

Na realidade brasileira, são milhões de desocupados, outros tantos de subocupados, precariamente integrados a estratégias diversas de sobrevivência. A insegurança alimentar é realidade para quase a metade da população, em um país que conta para o exterior o sucesso do agronegócio. Jovens sem lugar no mundo expressam o espírito do Brasil de nosso tempo, de um negócio que premia quem vive de renda e especula, ao tempo em que penaliza quem trabalha e produz.  



[1] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 166.

[2] MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 80.

[3] PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.19.

[4] NABUCO, Joaquim. Minha Formação. 2ª edição; Senado Federal, Brasília, 2001. Introdução de Gilberto Freyre. (1ª edição, 1900).

[5] FREYRE, Gilberto. “Introdução”. Joaquim Nabuco, Minha Formação, op. cit; p. 15.

[6] FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Pioneira, 1965.

[7] CARDOSO DE MELLO, João Manuel; NOVAIS, Fernando Antonio. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. Campinas: FACAMP, 2009.

[8] FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: Capitalismo em Construção (1906-1954). São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. pp. 223-224.