A PARTICIPAÇÃO SOCIAL E A DEMOCRACIA: UM OLHAR PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA

A PARTICIPAÇÃO SOCIAL E A DEMOCRACIA: UM OLHAR PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA

Valéria Damasceno Coelho –  Membro do Instituto Lavoro. Mestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília.

Giovanna Pietra Graduanda em Direito pela Universidade São Judas Tadeu.

João Victor Soares –  Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Estagiário na LBS Advogadas e Advogados. Membro do Instituto Lavoro.

Antonio Megale –  Advogado trabalhista com atuação jurídica junto ao movimento sindical. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de Coimbra (2020) e Especialista em Direitos Humanos do Trabalho e Direito Transnacional do Trabalho pela Universidad de Castilla-La Mancha (2018). Sócio da LBS Advogadas e Advogados e membro do Instituto Lavoro.

Fernanda Giorgi –  Sócia da LBS Advogadas e Advogados, Diretora do Instituto Lavoro e membro da Rede Lado. Especialista em Direitos Humanos do Trabalho e Direito Transnacional do Trabalho pela Universidad de Castilla-La Mancha. 

Resumo

A democracia participativa transcende o voto e encontra-se vinculada à participação efetiva dos sujeitos sociais. O propósito deste ensaio consiste em examinar a dinâmica da democracia brasileira e a participação social no país a partir da perspectiva teórica da “democracia participativa”, elaborada por Carole Pateman, considerando toda a (a)tipicidade do caso brasileiro. Para esse escopo analítico, foi conduzida revisão bibliográfica abrangente, incluindo as contribuições das/os principais estudiosas/os do tema, bem como a análise de eventos políticos que contribuem para a exemplificação da teoria em questão. Os resultados obtidos ratificam que a democracia participativa não se restringe à mera ação do sufrágio, mas também suscitam questionamentos relevantes acerca da inclusão dos diversos estratos sociais no processo participativo democrático. 

Palavras-chave: Democracia participativa. Participação social. Democracia brasileira. Sufrágio. Diálogo Social.

Abstract

Participatory democracy transcends the vote and is linked to the effective participation of social subjects. The objective of this essay is to examine the dynamics of Brazilian democracy and social participation in the country from the theoretical perspective of ‘participatory democracy,’ elaborated by Carole Pateman, considering the entirety of the Brazilian case. For this analytical scope, a comprehensive literature review was conducted, including contributions from the main scholars on the subject, as well as an analysis of political events that contribute to exemplify the theory in question. The obtained results confirm that participatory democracy is not restricted to mere suffrage but also raise relevant questions about the inclusion of diverse social strata in the democratic participatory process.

Keywords: Participatory democracy. Social participation. Brazilian democracy. Suffrage. Social dialogue.

 

Introdução

Em todo o mundo, o avanço do autoritarismo coloca em xeque até mesmo democracias consideradas “tradicionais” (Levitsky; Ziblatt, 2018). De um lado, as eleições em si parecem insuficientes para concretizar uma democracia plural e inclusiva. De outro lado, os mecanismos democráticos – especialmente o voto – têm sido cada vez mais alvo de investidas antidemocráticas – como, por exemplo, a polêmica do voto impresso no Brasil. É possível argumentar que os problemas que dificultam a realização da democracia estão enraizados na sociedade e envolvem elementos históricos, culturais e políticos, além de incluírem os próprios conceitos teóricos que norteiam o debate. Sobre esse elemento conceitual, convém começar pela pergunta básica: o que se quer dizer quando se fala em democracia? 

No caso do Brasil, há uma questão estruturante que tensiona o ideário democrático: a desigualdade. Diante de exclusão social tão profunda que assola o país, é possível afirmar que vivemos em uma democracia? Essa é uma questão complexa e com muitas nuances, que não pretendemos esgotar neste trabalho; desejamos, apenas, propor um horizonte de reflexão. Para isso, acreditamos ser necessário tratar a democracia em conjunto com a participação social, para entender até que ponto esses dois conceitos caminham juntos e se entrecruzam. A partir dessa perspectiva, o objetivo deste ensaio é analisar qual o lugar reservado à participação social em um regime democrático, utilizando como panorama de estudo o contexto brasileiro.

Para tanto, o trabalho está dividido em três seções. Na primeira, serão estabelecidas aproximações teóricas do conceito de “democracia”, buscando entender o que a define e o que a caracteriza, além de perceber como esse conceito se aproxima da ideia de participação social. Na segunda, objetivamos recuperar aspectos do panorama histórico da democracia brasileira, delineando eventos que consideramos indispensáveis para a compreensão do contexto atual desta sociedade; especificamente, serão analisados o cenário do Brasil Colônia e a ditadura militar brasileira. Já na terceira e última seção, iremos nos deter ao contexto atual, para perceber como a democracia brasileira e a participação social estão sendo tensionadas nos últimos anos. 

1. Que democracia queremos?

Dizemos que a democracia é central em nossas vidas. Celebramos a sua existência e identificamos ameaças que a colocam em risco. Vista como “um dos pilares do mundo Ocidental”, conseguimos reconhecer retrocessos em sua configuração, bem como apontar avanços necessários. Entretanto, ao menos no cotidiano, parece haver certa polissemia em torno do conceito, acompanhada da dificuldade em nomear o que seja, de fato, a democracia, ou até demarcar qual modelo de democracia queremos alcançar. Tomando como pressuposto que a delimitação conceitual é requisito indispensável para a qualificação dos debates em torno do tema, lançamos a seguinte questão: o que consideramos que caracteriza (ou deveria caracterizar) um regime democrático? 

“Democracia”, etimologicamente, remete ao grego: “demos” significa “povo” e “kratein”, “reinar” (Becker; Raveloson, 2011). A palavra designava uma forma de organização de Estado que, naquele momento, contrapunha-se à oligarquia e à tradição personalista pregada pelo domínio político. O governo democrático tinha por objetivo estabelecer um autogoverno pelo povo, de modo que o poder não ficasse restrito às elites. Após a Idade Moderna, esse modelo se transformou em requisito para a legitimação do poder instituído (Rosenfield, 2003), configurando-se como um ideal civilizatório. A partir desse contexto, o ideal democrático se expande e se consolida, ao lado de outros pilares do Estado moderno, de modo que, nos dias atuais, ele ocupa um lugar de privilégio nos debates sociais e políticos.

Entretanto, a história da democracia é marcada por uma grande contradição: a definição de “povo”. Se, por um lado, o governo democrático é aquele em que “o poder emana do povo”, por outro, a ideia de “povo” pode ser, em si mesma, excludente. Na Grécia antiga, por exemplo, o “povo” não compreendia mulheres nem pessoas em situação de escravidão, fazendo com que, mesmo em uma configuração democrática, boa parcela da população permanecesse excluída dos processos decisórios. Uma vez que se trata de conceito inserido em um contexto sociocultural e histórico, a ideia de “democracia” – e, consequentemente, de “povo” – foi sofrendo mudanças, acompanhando as transformações sociais, sendo paulatinamente alargada diante da atuação dos movimentos sociais reivindicatórios. Por isso, se até recentemente mulheres e pessoas negras não tinham permissão de votar, atualmente o voto universal é visto como requisito democrático inegociável e indispensável para as democracias modernas. Assim, esse direito já é garantido em vários países, de modo que todos e todas podem votar e escolher seus representantes, independentemente de raça, gênero, renda ou qualquer outro elemento que hierarquize sujeitos dentro de uma mesma sociedade.

Mesmo o voto universal, porém, não foi suficiente para resolver os conflitos sobre a noção de “povo” e suas configurações excludentes, assim como não foi suficiente para definir os contornos de uma sociedade democrática. Como aponta Denis Rosenfield (2003), ainda que a conquista do direito ao voto tenha sido, indiscutivelmente, um avanço, ele “pode tornar-se um simples ritual, deixando intacta a estrutura política e social se ele não vier acompanhado de outras formas de intervenção política” (Rosenfield, 2003, p. 21). Em sociedades tão desiguais quanto o Brasil, pergunta-se: será que a garantia do voto universal é suficiente para de fato democratizar o poder político? Será que as classes pobres conseguem fazer suas vozes serem ouvidas por aqueles que as representam politicamente? A resposta a essas questões só é possível quando consideramos que a democracia não se diferencia dos demais modelos de Estado meramente por um aspecto quantitativo, mas, principalmente, qualitativo, no sentido de ter como núcleo central a possibilidade de seus cidadãos exercerem suas liberdades políticas (Rosenfield, 2003). Assim, não se pode mirar a democracia unicamente sob uma perspectiva procedimental, posto que ela vai muito além da mera efetivação do direito de voto e da escolha de um representante de forma periódica. 

Nesse contexto, em que o sentido de democracia se associa à qualificação da ideia de “povo”, tanto para alargá-la quanto para colocá-la como centro das decisões, nos aproximamos do debate sobre democracia participativa, participação social e diálogo social. Essas reflexões nascem atreladas à ação dos movimentos populares reivindicatórios, sobretudo dos movimentos estudantis ocorridos na década de 1960 nos países europeus, que buscavam redefinir a posição dos indivíduos na sociedade, ancorados nas ideias de liberdade, igualdade e democracia. Em termos acadêmicos, as discussões sobre participação política e democracia surgem apenas no período Pós-Guerra, fruto da preocupação com a estabilidade dos governos democráticos estruturados a partir de regimes eleitorais (Miguel, 2017). Um dos modelos teóricos surgidos nesse período é o de “democracia participativa” proposto por Carole Pateman em meados dos anos 1970 e que servirá como base para nossas argumentações.

Para o cientista político Luis Felipe Miguel (2017), a teoria de Pateman é a abordagem mais radical para a compreensão de participação e de igualdade democrática. Essa teoria possibilita a inclusão de grupos anteriormente excluídos dos processos participativos, aumentando a eficácia nas tomadas de decisões e fomentando a mobilização no contexto político em geral. Entretanto, é preciso ressaltar que a democracia participativa, nos termos colocados por Pateman, não é sinônimo de democracia direta, modelo no qual as decisões políticas são tomadas diretamente pelo povo. Isso se dá porque uma democracia direta só pode ser efetivada diante da exclusão de boa parte da população, além de que, diante de sociedades com grandes contingentes populacionais e largos territórios, a utilização do modelo representativo torna-se inevitável (Miguel, 2017). Desse modo, Miguel (2017) explica que a democracia participativa surge não como substitutiva da democracia representativa, mas como forma de qualificá-la, tendo como horizonte o fim da exclusão social na participação política. Nessa perspectiva, o objetivo não é defender o declínio da representatividade, mas sim refinar e aprimorar o sistema existente com a participação e o incentivo ao diálogo social, para melhor atender ao indivíduo em sociedade, preservando sua verdadeira identidade social, de modo que uma das funções da democracia participativa seja justamente “o aprimoramento das instituições representativas” (Miguel, 2017, p. 89). 

Diante disso, a teoria de Pateman propõe que a participação popular direta está relacionada a três pilares: a expansão dos espaços de participação popular na vida cotidiana; a qualificação política da população, por meio da educação política, que seria capaz de diminuir a apatia com relação aos processos políticos; e a qualificação da representação, a partir do estabelecimento de mecanismos de autorização e de accountability (Miguel, 2017). Para a autora, esses elementos, quando articulados, poderiam viabilizar a materialização de um governo efetivamente democrático na sociedade, uma vez que as pessoas teriam autonomia para dirigir suas próprias vidas, por meio de uma integração da vida cotidiana ao coletivo e da educação política. Em suas palavras: 

Mais importante é a experiência da participação na própria tomada de decisões, e a complexa totalidade de resultados a que parece conduzir, tanto para o indivíduo quanto para o sistema político como um todo; tal experiência integra o indivíduo à sua sociedade e constitui o instrumental para transformá-la numa verdadeira comunidade. (Pateman, 1992, p. 42)

Luis Miguel (2017) argumenta que a disseminação da educação política por meio de processos participativos direciona o debate para uma transformação nas relações de produção. Miguel sustenta que a participação política, tal como defendida por Pateman, por meio da democratização dos espaços privados e laborais, levaria à valorização e ao aprimoramento das qualidades morais e cognitivas dos indivíduos, bem como a sua autonomia individual para lidar com a vida cotidiana. Consequentemente, isso resultaria no aperfeiçoamento da capacidade de cada um para participar das decisões na esfera política mais ampla, resultando na formação de cidadãos mais capacitados para o controle de seus representantes. Nesse contexto, a participação efetiva nos processos de tomada de decisão, como observado por Miguel, ampliaria a compreensão do indivíduo sobre seu papel na sociedade, pois a participação promoveria um senso de pertencimento e, consequentemente, teria um efeito educativo. Para Miguel: 

A abertura de espaços à participação popular direta é importante, dentre outros motivos, como forma de redistribuição do capital político – ou, para utilizar um linguajar mais up-to-date, como forma de “empoderamento” dos cidadãos comuns, que ganhariam tanto graus de autonomia em sua vida cotidiana quanto qualificação para melhor dialogar com seus representantes. É a participação que pode ampliar seus horizontes, dar a eles o entendimento da lógica da política, torná-los mais capazes de intervir de maneira consciente, até mesmo estratégica, na formulação de seus próprios interesses (Miguel, 2017, p. 110) 

Diante disso, a participação social tem o poder de ampliar e aprofundar a compreensão do indivíduo sobre a sua importância no processo político participativo. Um cidadão que possui a capacidade de compreender o seu papel no processo de tomada de decisão, concomitantemente, também compreende a importância política de se dispor a participar em processos decisórios. Por outro lado, é nessa participação social que reside a legitimidade do poder instituído, pois a partir dela os sujeitos poderiam ser capazes de se apropriar das decisões políticas, sejam elas localizadas ou globais, e tratá-las como assunto que os interessa diretamente.

No bojo dessa teoria, uma democracia autêntica só é possível a partir da participação social. Como aponta Pateman, “para que exista uma forma de governo democrática é necessária a existência de uma sociedade participativa, isto é, uma sociedade onde todos os sistemas políticos tenham sido democratizados e onde a socialização por meio da participação pode ocorrer em todas as áreas” (Pateman, 1992, p. 61). Desse modo, a democracia participativa representa uma evolução conceitual no paradigma democrático, almejando uma forma mais autêntica e plural de materialização do conceito, que oferece aos cidadãos uma concepção atualizada de cidadania. Assim, a compreensão do conceito democracia passa a incluir dimensões sociais e culturais, incorporando o diálogo social como elemento fundamental para a sua concretização, indo além de ser meramente um método para a constituição do Estado. 

Nesse contexto, fica evidente que a participação social não está restrita ao âmbito institucional. A proposta de Pateman apresenta a participação como emancipação social, ressaltando a importância de ela ser praticada em todos os contextos da sociedade, sejam eles locais – nos bairros, nas empresas e nas escolas, por exemplo – ou ampliados. No entanto, no campo do debate político, o ideário participativo nem sempre reflete esse imaginário (Teixeira, 2020). Como aponta Teixeira (2020), defender a participação social pode dizer respeito à mera participação pelo voto, ou até mesmo à escuta institucional. Isso significa que o manejo do significado dos conceitos políticos por aqueles que estão no poder, dentre eles o de participação social, é relevante para definir avanços ou retrocessos na realização da democracia.

Nos próximos tópicos, buscaremos analisar a relação do Brasil com a participação social e a democracia, tendo como horizonte a participação como emancipação, tal como proposta por Pateman. É a partir dessa concepção que propomos pensar o futuro da sociedade democrática, lançando como horizonte de ação a instituição de mecanismos eficazes e estruturados que possibilitem o diálogo e a participação social. Orientados por esse marco teórico, como podemos perceber a democracia brasileira? Como forma de delimitar o escopo do trabalho, nosso foco será no âmbito institucional e governamental. 

2. Breve panorama da democracia brasileira

Ao tratarmos sobre a questão da democracia e do diálogo social no Brasil, é importante entendermos os fatores sociais, históricos e econômicos que caracterizam o fenômeno em território nacional. Isso porque a democracia brasileira não pode ser entendida a partir de uma fórmula ou uma mera transposição do modelo estadunidense, por exemplo; no Brasil, ela está construída sob fenômenos históricos, o que a torna tão (a)típica. 

Assim como outros países da América Latina, o Brasil por muitos anos foi colônia de reinos europeus, o que trouxe consequências para o seu desenvolvimento político e econômico. Junto a isso também podemos apontar a exploração do trabalho escravo no país, que durou 388 anos e gerou danos que perduram até os dias atuais. Além disso, a Ditadura Militar que se estendeu entre 1964 e 1985 também causou impactos ao diálogo social e à democracia brasileira e trouxe consigo diversos problemas, como o aprofundamento das desigualdades sociais, o fortalecimento do discurso autoritário e a morte e desaparecimento das pessoas que militaram contra o regime. Esses dois contextos serão estudados mais detidamente nos próximos subtópicos.

2.1. Democracia e Raça

Quando analisamos a construção da democracia a partir de uma perspectiva nacional, precisamos levar em consideração os diversos pontos que perpassam a discussão, principalmente, o passado colonial de nosso país. De acordo com Ynaê Lopes dos Santos (2022, p. 16), “não há história do Brasil sem racismo”, de modo que é impossível realizarmos uma análise completa acerca do diálogo social e a sua relação com a democracia sem considerar perspectivas de gênero, de classe e, em especial, de raça.  

Nesse sentido, deve-se compreender em primeiro lugar que não são todos os corpos que são convidados a ocupar o espaço que se compreende como “democrático”. Desse modo, é importante retomarmos o que Mbembe (2010) compreende como “necropolítica”: a capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada, é a política da morte em que certos corpos serão escolhidos, de forma consciente, para serem mortos, levando em consideração critérios racistas. Assim, podemos atestar que corpos negros não são apenas excluídos dos espaços de diálogo social e democracia – no molde liberal – mas também serão exterminados a partir da política.

Sob essa perspectiva, quais seriam então os corpos que têm o direito ao diálogo e à participação democrática? Percebemos nesse ponto a perpetuação histórica da noção do “homem-cidadão” que exclui grande parte da parcela da população, marginalizada social e economicamente. É importante retomar as palavras de Florestan Fernandes (1978, p. 20): “[a] sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo”. Diante disso, no Brasil, a discussão sobre o diálogo social e da democracia parte do princípio de que essas pessoas seguem excluídas desse campo – não por mecanismos formais, mas estruturais.

2.2. O Regime Militar brasileiro

Entre 1964 e 1985, o Brasil passou por um período histórico marcado por eventos que deixaram profundas e permanentes marcas em toda a sociedade: o Regime Militar. Esse período, marcado por tortura, desaparecimentos forçados, censura, violência, perseguições, retrocesso e ódio também é relevante para entendermos a construção do diálogo social no país. Ao longo de duas décadas, a população brasileira enfrentou sérias violações de direitos humanos e repressão política contra opositores ao regime. A censura controlava a imprensa e a liberdade de expressão, limitando o acesso à informação e sufocando vozes críticas. Além disso, o regime representou um retrocesso para a democracia e o diálogo social, consolidando uma estrutura de poder autoritária. A sociedade foi dividida por um clima de medo e desconfiança, afetando a convivência social.  

Apesar desse cenário, o governo militar se deparou com forte resistência promovida pelos movimentos sociais. O crescente anseio por democracia criou uma identidade coletiva forte o suficiente para unir diversos segmentos sociais em passeatas, manifestações e protestos em oposição ao autoritarismo (Souza, 2018) até desembocar nos movimentos de redemocratização e na nova Constituição federal, em 1988, a “Constituição Cidadã”.  

A Carta Magna representou a instauração do Estado Democrático de Direito no Brasil após 21 anos de um regime militar marcado pela violência e intolerância. Seus 246 artigos se comprometem a assegurar “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos” (Brasil, 1988). 

Quase 30 anos depois da promulgação da Constituição, entre 2016 e 2022, o Brasil experimentou grave crise constitucional, ou, como dito pelo professor Cristiano Paixão (2018), “uma crise desconstituinte”, que se materializava na tentativa de desconstrução de direitos fundamentais protegidos pela Constituição de 1988. A Emenda Constitucional n° 95, de 2016, que institui o teto de gastos públicos; o corte de 1,7 bilhões nas universidades públicas proposto pelo MEC em 2019; a Medida Provisória nº 966, que isenta agentes públicos de responsabilidade durante a pandemia de Covid-19 são manifestações do movimento desconstituinte encabeçado por setores que, ocupando espaços de poder, não se sentem contemplados pela Constituição de 1988 e querem retirar os direitos nela contemplados. 

Apesar dessa crise desconstituinte ter se intensificado nos últimos quatro anos, a sua gênese é complexa. Para entendê-la, é necessário partir de uma análise completa do contexto constituinte e sua repercussão ao longo dos anos até chegarmos nas crises políticas que começam a tomar forma com os protestos de junho de 2013, se intensificam com o resultado das eleições de 2014 e que, por fim, vão culminar em uma grande crise constitucional após o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Em 2019, a vitória da extrema direita nas urnas vai representar mais crises à democracia e em especial, ao diálogo social. Nesse sentido, é possível perceber que, durante o governo Bolsonaro, diversos fóruns de participação social foram extintos ou sofreram restrições no que diz respeito à participação da sociedade civil. É sobre esse cenário recente que trataremos a seguir.

3. O Brasil hoje

Momentos antes de sua eleição à Presidência da República no ano de 2019, Jair Messias Bolsonaro declarava a sua pretensão em “colocar um ponto final em todos os ativismos”, marcando o início de uma busca incessante da política da extrema direita em extinguir os espaços de participação social, sobretudo, em instituir um sistema de exclusão dos grupos minoritários nos processos decisórios, instaurando, assim, uma crise democrática. Por meio de discursos autoritários, misóginos, racistas, homofóbicos e opressores, Bolsonaro já evidenciava, antes mesmo de sua vitória, os sinais de que a promoção ao diálogo social e a construção de espaços de participação popular não fariam parte de sua agenda, introduzindo em seu governo pautas antagônicas aos movimentos sociais e promovendo a repressão e a obstrução da participação da sociedade civil na gestão política.

No início de seu mandato, o ex-presidente promulgou a Medida Provisória nº 870/2019, que propôs mudanças na estrutura dos ministérios e excluiu a população LGBTQIAPN+ das políticas e diretrizes à promoção dos direitos humanos, uma conquista da sociedade civil, com protagonismo do movimento LGBT na luta pelos direitos fundamentais e por uma democracia participativa. 

No mesmo ano, Bolsonaro também proferiu críticas ao financiamento público de produções relacionadas à comunidade LGBTQIAPN+, ameaçando o próprio funcionamento da Agência Nacional de Cinema (ANCINE) em caso de “liberação de recursos para essa modalidade de produções” (Soto, 2019). 

Como marco do centésimo dia de seu mandato, o ex-presidente assinou um conjunto de decretos, dentre eles o Decreto nº 9.759/2019 (Brasil, 2019), que extinguiu colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, como conselhos, comitês, comissões, grupos, fóruns e salas, que tenham sido criados por decreto ou ato normativo inferior. O argumento apresentado foi o de que vários colegiados que seriam extintos tinham um viés ideológico e era necessário “despetizar” esses espaços. Dentre os colegiados extintos, estavam o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT). A medida sofreu duras críticas e depois teve sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal, por violar princípios constitucionais, como o da participação social, do controle social e da soberania popular. No dia 1º de janeiro de 2023, o decreto foi revogado.

No ano de 2019, Bolsonaro retirou da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a competência de identificar e demarcar terras indígenas, transferindo tal atribuição para o Ministério da Agricultura, entidade notoriamente influenciada por setores ruralistas em disputas por terras indígenas. Ainda, como forma de repressão, em outubro de 2022, Bolsonaro designou agentes militares para cargos de confiança e a presidência na FUNAI, resultando na remoção de importantes figuras de representação indigenistas do órgão (Gabriel, 2022). Cabe destacar que tais medidas acabaram por afastar os povos indígenas e as comunidades originárias de seu local de participação na sociedade, construindo espaços menos representativos a eles, atacando direitos fundamentais das comunidades e excluindo os corpos que historicamente foram marcados pelo preconceito. Em uma democracia participativa, a mera existência de um órgão como a FUNAI não se mostra suficiente para a representação de determinado grupo social, sendo necessário que aqueles que assumem as posições de poder decisório possuam qualidade para tal representação.

Ainda em sua gestão, Bolsonaro encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 732 (Brasil, 2022), com o fim de atualizar a Lei Antiterrorismo, por meio de modificações normativas destinadas a classificar a luta dos movimentos sociais de terra e moradia – principalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – como “ações violentas com fins políticos ou ideológicos” na classificação de terrorismo. Em coletivas de imprensa na região do Nordeste, o ex-presidente reiterou sua política de não dialogar com o movimento: “[r]espeitamos a propriedade privada. Não queremos saber de MST” (Sobreira, 2020). A decisão em não dialogar com os movimentos sociais e criminalizá-los carrega em sua essência a busca por extinguir os movimentos sociais por meio do desmonte das políticas agrárias e de incentivos à agricultura familiar, ameando a existência da comunidade e construindo um processo de enfraquecimento da democracia.

Conforme se evidencia, o governo de Jair Bolsonaro caracterizou-se pelo confronto e pelo retrocesso à democracia no Brasil, promovendo, de maneira autoritária, a redução dos espaços de participação social e o controle sobre o livre exercício democrático. Em seu governo, tornou-se evidente a intenção de silenciar as vozes minoritárias na sociedade, delineando em suas políticas “quem importa e quem não tem importância, quem é essencial e quem é descartável” (Castilho; Lemos, 2021, p. 271). Observa-se em seu plano político a tentativa de inversão dos preceitos democráticos, os quais, na teoria, se estabelecem “de baixo para cima”, buscou-se colocá-los “de cima para baixo”, desconstruindo o princípio de que o poder soberano emana do povo e, mais ainda, de quem seria compreendido pela sua noção de “povo”.

Os retrocessos perpetrados por Bolsonaro abrem as portas para a reflexão do conceito de democracia que buscamos. Nesse contexto, para a concretização de um ideal de participação democrática, torna-se necessário transcender o conceito meramente eleitoral da democracia direta, que se restringe à efetivação do voto e à escolha de um representante, e requer o aprimoramento das instituições participativas, por meio da qualificação tanto do indivíduo, quanto de sua representação.

A democracia participativa tem como premissa fundamental a busca por espaços decisórios mais amplos para atores sociais que frequentemente são excluídos desses lugares. Contudo, para sua efetivação, é necessário que sejam questionadas tanto a construção dos espaços de interlocução social, quanto a identidade dos corpos e vozes que ocupam esses referidos espaços e representam o grupo em questão. É insuficiente para uma busca de participação democrática incluir novos atores nos espaços decisórios para votarem em alternativas que não formularão, sendo necessário, portanto, a ampliação dos locais para argumentação e aprendizagem, alcançando, assim, um efeito educativo por meio da participação e aprimorando o sentimento de pertencimento do indivíduo.

O modelo representativo, por si só, revela-se insuficiente para atender às expectativas e necessidades dos representados, limitando-se a apenas refletir o poder detido pelos representantes. Para a construção de uma democracia participativa, é necessário aperfeiçoar o sistema representativo, bem como promover a abertura dos espaços políticos à participação popular direta, como forma de dar ao povo, sem a exclusão de qualquer grupo, graus de autonomia em seu cotidiano e uma qualificação para um diálogo mais eficaz com os seus representantes. É necessário desviar o olhar fixo para o Estado e seus meios procedimentais para efetivação de democracia e voltá-los para o próprio cidadão. Conforme salientado por Paulo Bonavides, “consiste a essência e o espírito da nova legitimidade: o abraço com a Constituição aberta, onde, sem cidadania não se governa e sem povo não se alcança a soberania legítima” (Bonavides, 2003, p. 36).

Após quatro anos marcados por um processo de fragilização da democracia, em outubro de 2022, após acirrada disputa eleitoral, a vitória de Luís Inácio Lula da Silva marca novo capítulo na narrativa histórica do Brasil. O retorno de Lula parece ser uma oportunidade para reestabelecer e ressignificar o Estado Democrático de Direito e a democracia participativa. 

Considerações finais

Neste ensaio, afirmamos que a democracia participativa não se restringe ao exercício do voto. Tendo como central em seu conceito a participação social, trata-se de modelo capaz de contribuir para o exercício da cidadania e para a realização de uma democracia que seja, de fato, democrática. Apesar de parecer redundante, falar em “democratizar” a democracia faz sentido na medida em que historicamente esse modelo foi marcado pela exclusão social e, mesmo atualmente não existindo nenhuma democracia perfeita, os frágeis avanços permanecem em constante ameaça por regimes autoritários e por aqueles que desejam ter o poder para si. 

Nesse contexto, as discussões sobre participação social não são recentes, mas ocupam posições polissêmicas. Buscamos recuperar o sentido revolucionário do ideário participativo proposto por Carole Pateman, em que participar significa compor os espaços decisórios cotidianos, desde aqueles presentes em bairros, empresas, sindicatos e escolas, até alcançar o mais alto escalão da política. Para isso, deve haver um exercício individual e coletivo de retomada do curso da vida e de atuação, e que, apesar de perpassar a ação do sujeito, indiscutivelmente é impulsionada pela institucionalidade. Diante disso, este trabalho esteve focado em discutir justamente a participação social institucionalizada e como ela tem sido articulada no Brasil.

Foi possível perceber que a democracia brasileira é frágil, recente e cheia de percalços em sua trajetória. O Brasil é um país desigual, reflexo de sua história colonial e de sua cultura de exclusão social, repressão e desigualdade, contexto que alimenta a composição democrática brasileira. Não por acaso, a ascensão de uma figura autoritária ao poder representou o retrocesso em diversas políticas de participação social, com a eliminação de conselhos participativos e o discurso de recusa ao diálogo social. Felizmente, esse quadro está novamente diante de possibilidades positivas de transformação, diante das quais se observa um movimento de restabelecimento paulatino da estrutura de diálogo com a sociedade. Apesar disso, os riscos de retroceder nas duras conquistas democráticas seguem sendo ameaças constantes.

Por isso, entendemos ser importante demarcar qual ideal de democracia buscamos e como ele se instrumentaliza. Uma vez que o objetivo de uma democracia deve ser o fim da exclusão social, um caminho possível é defender a participação social como sinônimo de educação política, para que não se corra o risco de ela ficar restrita à eleição de representantes. Para isso, é necessário assegurar a escuta e a relevância de todas as vozes. Além disso, esse ideário pode ser fomentado para que alcance escolas, associações e empresas. A consequência pode ser a formação de cidadãos interessados politicamente no futuro de suas vidas, e engajados politicamente com a sociedade, uma condição que caracteriza a democracia que queremos.  

Referências

Becker, Paula; Raveloson, Jean-Aimé A. O quê é democracia? Luanda: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2011.

Bonavides, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2008. 

Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Decreto nº 9.759 de 11 de abril de 2019. Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. Revogado.

Brasil. Projeto de Lei nº 732/2022. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, a Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016, a Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, e a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, para aperfeiçoar a legislação penal para fortalecer o combate à criminalidade violenta.

Castilho, Daniela Ribeiro; Lemos, Esther Luíza de Souza. Necropolítica e governo Jair Bolsonaro: repercussões na seguridade social brasileira. Revista Katálysis, v. 24, n. 2, p. 269-279, maio 2021.

Fernandes, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Ática, 1978.

Gabriel, João. Governo Bolsonaro nomeou ex-assessor de Collor, vendedor de carros e militares na Funai. Folha de São Paulo, 18 de outubro de 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/10/governo-bolsonaro-nomeou-ex-assessor-de-collor-vendedor-de-carros-e-militares-na-funai.shtml. Acesso em: 13 nov. 2023.

Levitsky, Steven; Ziblatt, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

Mbembe, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Miguel, Luis Felipe. Resgatar a participação: democracia participativa e representação política no debate contemporâneo. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 100, p. 83-119, jan. 2017.

Paixão, Cristiano. 30 anos: crise e futuro da Constituição de 1988. JOTA info. 05 de mai. De 2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/30-anos- crise-e-futuro-da-constituicao-de-1988-03052018. Acesso em: 05 de nov. de 2020, 2018

Pateman, Carole. Participação e teoria democrática. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

Rosenfield, Denis L. O que é democracia. São Paulo: Brasiliense, 2003. Coleção Primeiros Passos.

Santos, Ynaê Lopes dos. Racismo brasileiro: uma história da formação do país. São Paulo: Todavia, 2022.

Sobreira, Amanda. Crítica de Bolsonaro ao MST no Nordeste favorece a grilagem e o desmatamento. Folha de São Paulo, 17 de outubro de 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/10/17/critica-de-bolsonaro-ao-mst-no-nordeste-favorece-a-grilagem-e-o-desmatamento. Acesso em: 13 nov. 2023.

Soto, Cesar. Bolsonaro diz que não vai financiar produções com temas LGBT; conheça séries citadas. G1, 16 de agosto de 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-

arte/noticia/2019/08/16/bolsonaro-diz-que-nao-vai-financiar-producoes-com-temas-lgbt-conheca-series-citadas.ghtml. Acesso em: 13 nov. 2023.

Souza, Lucas Marcelo Tomaz de. Abaixo a ditadura: movimentos sociais no Brasil em 1968. Teoria e Cultura, Minas Gerais. v. 13 n. 1, jun. 2018, p. 179-194.

Teixeira, Ana Claudia Chaves. Trajetórias do ideário participativo no Brasil. Caderno CRH, Salvador, v. 33, p. 01-15, 2020.