As organizações sindicais argentinas perante a pandemia de Covid-19

As organizações sindicais argentinas perante a pandemia de Covid-19

Hugo Yasky 

Secretário Geral da Central de Trabalhadores da Argentina e deputado nacional 

 

As organizações sindicais na Argentina têm alto grau de desenvolvimento e forte influência na vida política, assim como extensa presença ao longo da história. Essa presença do movimento operário organizado pode ser observada em diversas dimensões que oferecem variadas alternativas de ponderação, tanto qualitativas como quantitativas.  

A primeira organização de trabalhadores no país remonta ao ano de 1857, com a criação da Sociedade Tipográfica Bonaerense, apenas alguns anos após a sanção da Constituição Nacional e sete antes da fundação da Primeira Internacional Operária em Londres, na Inglaterra. O emblemático ano de 1890, em que se realizou a grande ação mundial do 1º de Maio, encontrou o proletariado argentino com uma trintena de sindicatos tentando a consolidação de uma central operária em meio às diferenças entre anarquistas e socialistas. Apesar do escasso desenvolvimento da indústria no final do século XIX, as fortes correntes imigratórias de mão de obra se refletiram no fato de que o primeiro ato mundial do Dia dos Trabalhadores tivesse na Argentina presença em Buenos Aires, Rosário, Bahia Blanca e Chivilcoy, entre outras cidades. Na década de 1930, após um crescimento sustentado dos conflitos trabalhistas e da mobilização sindical, ocorreram mudanças na conformação das organizações operárias, mudanças estas influenciadas pela forte repressão governamental, pelos efeitos locais da crise econômica mundial e pela incipiente industrialização por substituição de importações. Essas transformações afetariam a estruturação do mundo sindical com duas novas figuras de grande importância no seu desenvolvimento: a organização por ramo de atividade e a comissão interna. A primeira permitirá uniões muito mais numerosas e, portanto, com maior possibilidade de pressão no confronto com o capital. A segunda dará lugar à presença do sindicato no local de trabalho. Essas mudanças, junto a diferentes causas político-conjunturais que excedem este artigo, levam à conversão de um sindicalismo marcado por correntes partidárias vinculadas ao socialismo e ao comunismo para um novo tipo sindical (Del Campo, 2004). O nível de conflito trabalhista voltou a aumentar, com grande quantidade de greves à medida que avançava a chamada década infame e delineou, quase desde as origens da CGT – Confederação Geral do Trabalho, em 1930, uma divisão entre setores mais combativos e os mais conciliadores. Essa divisão só cessou durante o primeiro governo de Juan Domingo Perón. O novo sindicalismo, ao mesmo tempo, produziu e foi produzido pelo surgimento do Peronismo como movimento político nacional capaz de representar os trabalhadores no contexto de uma aliança de setores de classe (James, 2005). O vínculo orgânico do sindicalismo com essa força política institucionalizou a relação entre os trabalhadores organizados e o Estado, que perdura apesar das tentativas de destruí-la por parte das representações das classes dominantes cada vez que estas chegaram ao governo, na maior parte das vezes no século XX mediante golpes militares.  

Essa perdurabilidade se transformou para as classes dominantes no fato maldito, no objetivo a destruir, principalmente a partir das experiências neoliberais iniciadas em 1976. Em seu livro Bases para uma Argentina moderna 1976-1980, José Alfredo Martínez de Hoz, ministro da Economia dessa ditadura cívico-militar, insiste sobre o necessário “saneamento e abertura da economia”, que implica retirar dela o mal endêmico do poder sindical (Tzieman, 2017).  

No entanto, apesar das investidas repressivas dos governos militares, que com a cumplicidade do empresariado fizeram desaparecer milhares e milhares de ativistas sindicais, e das diferentes formas de cooptação que acompanharam as reformas liberais dos anos 90 do século passado, o sindicalismo manteve sua presença na dinâmica política argentina. Essa fortaleza se evidencia, como assinalamos antes, em diversas dimensões. Examinemos algumas. 

A taxa de sindicalização na Argentina ronda os 40%, o que a situa muito acima da média da região. É superada apenas pela do Uruguai, um país com muito baixo desenvolvimento industrial e uma sindicalização baseada no emprego estatal e de serviços. No caso que nos ocupa, a sindicalização entre os empregados registrados é de 46% no setor público e de 35% no setor privado, muito acima da taxa de sindicalização de vários países europeus. Mas este não é o único dado que descreve o fenômeno sindical argentino. A densidade organizacional em termos de presença dos sindicatos no local de trabalho por meio de delegados e comissões internas, além de sua participação em comitês mistos de segurança e higiene, também conta com altas porcentagens na comparação com outras economias da região. No mesmo sentido, a capacidade das organizações para incidir nas condições salariais e trabalhistas por meio das convenções coletivas de trabalho, cujos acordos possuem status equivalente ao de leis, continua sendo alta na Argentina. Essa influência sobre a vida cotidiana dos trabalhadores se mantém, mesmo tendo diminuído pelo crescimento do emprego informal (Tomada, 2018).  

Outro elemento importante a se levar em consideração é a capacidade de mobilização dos sindicatos argentinos. Tanto para reivindicações setoriais concretas, como aumentos de salário e melhoras nas condições de trabalho, quanto para impugnar ou apoiar políticas de governo, os sindicatos argentinos mantêm uma presença nas ruas equiparável à de poucos movimentos e instituições com esse nível de organicidade. De fato, as novas correntes que irromperam na política com capacidade de mobilização integram ou imitam práticas sindicais nas suas ações. Os trabalhadores da economia informal, que cresceram na organização desde a década de 1990 e se consolidaram institucionalmente nos governos de Néstor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner, adotaram ou tentaram adotar formas tomadas do sindicalismo. Primeiro as principais vertentes se incorporaram à CTA e, nos últimos anos, as mais numerosas pediram seu ingresso formal à CGT. Demandas, reivindicações e culturas provenientes de outros coletivos sociais dialogam intensamente com as organizações sindicais (Abal Medina, 2017). O movimento de mulheres, o de diversidade de gênero e organismos de direitos humanos aprofundaram essa relação nos últimos anos, ocupando as ruas junto ao movimento sindical. Sobretudo nas grandes mobilizações dos anos do governo neoliberal de Mauricio Macri.  

Apesar das diferenças políticas que dividem as atuais correntes sindicais, sua presença na política e seu relativo poder de veto se renovou entre 2015 e 2019. Do mesmo modo, em que pese as fortes campanhas de estigmatização e desprestígio da comunicação hegemônica, seja nas redes sociais ou na mídia tradicional, sua intervenção como organizações representativas têm efeitos sobre as decisões de governo.  

Esse acúmulo histórico que descrevemos da organização sindical na Argentina condiciona as formas de relacionamento que, no contexto de pandemia, ocorreram entre os efeitos de retração econômica, as tentativas incessantes do capital de flexibilizar as regulações, as estratégias sindicais e as respostas estatais diante da excepcionalidade sanitária. Como mencionamos no início, depois de 2017, sem dúvida o melhor ano em termos relativos dentre os quatro da gestão do ex-presidente Mauricio Macri, a atividade da economia argentina entrou em uma trajetória de declínio na qual todos os índices pioraram e que terminou em uma escalada inflacionária, perda de emprego formal, queda do salário real e destruição de pequenas e médias empresas. O governo neoliberal respondeu a esse cenário aprofundando o ciclo de endividamento externo com um empréstimo inédito junto ao Fundo Monetário Internacional. Em matéria trabalhista o saldo foi a destruição de postos de trabalho e a deterioração do emprego. Enquanto o desemprego subiu de 6,6% para 10,6% da população economicamente ativa, a taxa de subocupação cresceu de 9% para 13,1%, ambos os aumentos entre 2016 e 2019 (CIFRA-CTA). Cabe destacar que em 2016 o presidente Macri vetou uma lei sancionada pelo Congresso e promovida pela totalidade dos setores sindicais que estabelecia a proibição das demissões sem justa causa. Esse fato é significativo em função da unidade alcançada no campo sindical a favor dessa norma que obtivera maioria no Legislativo. 

Esse era o panorama que conformava o cenário afetado pela pandemia de Covid-19 e suas consequências econômicas. Como na maior parte do mundo, em 2020 a atividade econômica e o emprego se viram extraordinariamente impactados. Na Argentina o maior impacto teve lugar no segundo trimestre do ano de 2020, coincidindo com a adoção das medidas mais restritivas à circulação e à produção no contexto do isolamento preventivo e obrigatório. Nesse período, o PIB sofreu uma redução de 15,8% e o número de ocupados diminuiu em 20,7%. Desde então, à medida que a economia se reativava, o mesmo ocorria com o emprego, ainda que com menor intensidade. Somente no primeiro trimestre de 2021 é possível dizer que o emprego se aproximou ao nível prévio à pandemia. Na queda e recuperação do emprego, as diversas categorias ocupacionais tiveram trajetórias bem diferenciadas. Em particular destaca-se a estabilidade relativa do emprego assalariado registrado, protegido por suas próprias regulações trabalhistas, pela proibição de demissões estabelecida pelo Decreto de Necessidade e Urgência 329/20 e suas emendas e pela implementação do Programa de Assistência de Emergência ao Trabalho e à Produção (ATP) para contribuir com o pagamento do custo salarial. Já o emprego assalariado não registrado, estruturalmente mais vulnerável, sofreu especialmente no contexto desta pandemia. Chegou a ter uma queda de 44,7% no segundo trimestre de 2020 e na atualidade continua sendo a categoria mais afetada, com 11,9% a menos de ocupados do que no primeiro trimestre de 2020 (CIFRA-CTA). Para esse setor, o Estado dispôs uma Renda Familiar de Emergência em quatro parcelas que acabou sendo muito inferior à recebida pelos empregados em relação de dependência. Tal fato aprofundou a brecha entre esses dois subconjuntos de assalariados. 

Os rendimentos dos trabalhadores, que já haviam perdido grande parte do seu poder aquisitivo nos anos do governo da legenda Cambiemos, continuaram em sua trajetória de redução. Com o agravante de que a perda do poder de compra foi extremamente desigual. Enquanto para o estrato mais baixo de trabalhadores (os 40% que ganham menos) a perda foi de 27%, para o estrato mais alto (os 20% que ganham mais) foi de 19%, entre os primeiros trimestres de 2018 e 2021. Como resultado da perda real dos salários, somada à queda no número de postos de trabalho, os trabalhadores em seu conjunto tiveram reduzida sua participação no valor agregado no país. Essa participação era de 49,8% no primeiro trimestre de 2020 e diminuiu para 46,1% no primeiro trimestre do ano em curso (CIFRA-CTA). Tal transferência de renda do trabalho para o capital se soma à que teve lugar durante o macrismo. Embora os salários tenham começado a se recuperar lenta e instavelmente desde o final de 2020, a aceleração da inflação ocorrida nos primeiros meses de 2021 põe limites a essa incipiente e limitada melhora. 

À diferença de rendimentos que observamos pela distância entre o ATP recebido pelos registrados afetados pela pandemia e a Renda Familiar de Emergência recebida por 10 milhões dos não registrados, devemos somar outras intervenções do movimento sindical que resultaram em medidas de governo favoráveis aos trabalhadores formais.  

As primeiras medidas nesse sentido foram a proibição das demissões e o estabelecimento da dupla indenização. A primeira norma foi sancionada pelo Decreto de Necessidade e Urgência número 329 de março de 2020 e a segunda pelo número 34, de dezembro de 2020. Ambas as ferramentas sofreram diversas prorrogações que estendem sua vigência até dezembro de 2021. A proibição de demissões sem justa causa ou com causas vinculadas à diminuição da atividade gerada pela pandemia foi acompanhada por transferências diretas por parte do Estado para o setor empresarial a fim de sustentar os salários em meio à crise. A dupla indenização é aplicada apenas no emprego privado para os casos de demissão sem justa causa ou com invocação de causa inverossímil, carente de sustentação ou manifestamente falsa. Também contempla a demissão indireta.  

Adicionalmente foi aprovada em 2020 a Lei 27.555, conhecida como Lei do Teletrabalho, com grande participação de centrais e deputados sindicais. Algumas de suas regulações representam avanços em termos de direitos trabalhistas. Contempla, por exemplo, as noções de “voluntariedade” e “reversibilidade”, que permitem aos trabalhadores e trabalhadoras a opção de adotar a modalidade à distância, voltar à presencial ou manter a virtual a depender das condições sanitárias. A norma garante o direito à desconexão para que exista uma jornada de trabalho limitada no tempo. Impõe ainda ao empregador a responsabilidade de propiciar os elementos e equipamentos de trabalho, tais como a compensação de gastos em conectividade e serviços ocasionados pela modalidade virtual, além da capacitação. Assegura também a representação sindical e os direitos coletivos no quadro da Lei de Associações Sindicais.  

Nesse mesmo campo das regulações impulsionadas pelas organizações sindicais, o Poder Executivo Nacional enviou ao Congresso o projeto de lei de criação de comissões mistas de segurança e higiene. O objetivo dessa lei é garantir efetivamente a segurança e a saúde das pessoas que trabalham, por meio da participação dos trabalhadores e trabalhadoras e de suas associações sindicais tanto no setor público quanto no privado. Cria-se a figura do Delegado/a de Prevenção, que representa os e as trabalhadoras com funções específicas em matéria de prevenção de riscos no trabalho e controle das condições de saúde e segurança no trabalho. O Comitê Misto de Prevenção de Riscos no Trabalho é um órgão paritário colegiado de participação destinado à consulta regular e periódica das atuações da empresa ou exploração em matéria de prevenção de riscos.  

Essas novas normas, somadas a um conjunto de leis sindicais e à vigência das convenções coletivas de trabalho, além do exercício da representação coletiva, fazem com que, apesar da informalidade, a fortaleza do movimento sindical se mantenha na Argentina.  

A combinação desses elementos contribui para explicar diferentes fenômenos associados à forma como os trabalhadores formais e informais sofreram as consequências da pandemia, mas também das transformações da economia que já se vislumbravam antes de sua irrupção. Por um lado, no âmbito do emprego formal, nos últimos dois anos foi mais sentido o efeito da alta inflação do que o da perda de postos de trabalho. Ao mesmo tempo, apesar das políticas implementadas para os setores que se registram como trabalhadores mediante organizações da economia popular, corre-se o risco de acentuar e cristalizar a diferenciação entre dois submundos do trabalho: um protegido e com direitos e outro que, mesmo incorporando alguma forma de legalidade, continua carecendo da proteção das leis trabalhistas amplamente desenvolvidas na Argentina.  

Sobre esse aspecto, devemos pontuar duas questões relacionadas à pandemia. No campo dos trabalhadores registrados, a proteção legal de seus postos de trabalho e a manutenção de paritárias livres contribuíram para agilizar a recuperação pós-pandêmica. Essa recuperação afeta o subsistema dos trabalhadores não protegidos sob a lógica do efeito de transbordamento, na medida em que os protegidos pertencem a setores médios que consomem serviços proporcionados por trabalhadores informais. Além disso, as centrais sindicais definem de forma tripartite o valor do salário-mínimo, de baixo impacto na média salarial dos trabalhadores sob convenção coletiva, mas de grande importância para a informalidade, já que estabelece os rendimentos de dois milhões de beneficiários de programas de assistência ao trabalho da economia social. 

Em suma, de maneira análoga ao aprofundamento da desigualdade estrutural mostrado por dados de concentração da riqueza e crescimento da pobreza, entre os trabalhadores argentinos parece aumentar a brecha entre os registrados e os não registrados. As propostas de um setor do empresariado e das forças políticas identificadas com a ortodoxia neoliberal de flexibilizar a legislação trabalhista através de, por exemplo, eliminar a indenização por demissão arbitrária, buscam reduzir essa brecha nivelando por baixo. No mesmo sentido operam as chamadas “economias de plataforma” que, entre outros mecanismos, vêm utilizando o eufemismo de “trabalho colaborativo” para ocultar o vínculo empregatício entre o trabalhador e o capitalista com o objetivo de esquivar os aspectos protetores da legislação laboral.  

A pandemia e seus efeitos têm aumentado a desproteção de quem trabalha. O processo, já de várias décadas, de transformações neoliberais na economia que dissolvem os direitos antes associados ao acesso ao posto de trabalho, aumentou seu impacto nas condições laborais: os fenômenos de terceirização, externalização, contratos temporários e “economia colaborativa” assinalam as mudanças nas modalidades contratuais dos empregos pelas chamadas “novas economias de negócios”. A consequência é o avanço da destruição das condições de trabalho organizadas após a segunda guerra mundial, quando os sindicatos, em sua longa luta, haviam conseguido cristalizar as demandas de homens e mulheres assalariadas/os.  

Não é só o desemprego que preocupa como fato concreto ou como ameaça, mas também um futuro de pauperização contínua das condições de trabalho diferenciadas entre os empregados plenos formais e aqueles que carecem de contratos tradicionais de proteção, bem como a consolidação de um trabalho por conta própria de baixa qualificação que contribui para perpetuar as condições estruturais de pobreza. 

Este artigo foi publicado no livro “Sindicato: entre a Permanência e a Mudança – Regulações e Desafios para o futuro”. Clique aqui para acessar o material completo.