Diretrizes para a reestruturação sindical em um mundo do trabalho em transformação

Diretrizes para a reestruturação sindical em um mundo do trabalho em transformação

Clemente Ganz Lúcio

Consultor sindical e assessor do Fórum das Centrais Sindicais


Este artigo apresenta diretrizes gerais para o desenvolvimento de uma ampla reestruturação sindical, exigência que se coloca frente às transformações que ocorrem no sistema produtivo e no mundo do trabalho, para responder à flexibilização laboral e à precarização do trabalho, bem como diante dos ataques que o sindicalismo vem sofrendo. A reestruturação sindical é exigência para recuperar o protagonismo histórico da classe trabalhadora nas disputas sobre o futuro do mundo do trabalho, em relação à qualidade dos empregos, o incremento da renda do trabalho, as proteções laboral, social, previdenciária e sindical.


  1. Por que mudar?

 As mudanças no mundo do trabalho se processam no conjunto do sistema produtivo e afetam a vida dos trabalhadores de maneira profunda. Os postos de trabalho são atingidos pelas novas tecnologias, alterando, eliminando ou criando ocupações. As profissões exigem novas competências e formação profissional contínua. Multiplicam-se as formas precárias e inseguras de ocupação, bem como se expandem formas de contrato flexível precárias para os assalariados e servidores públicos; terceirização sem limite; extensão da jornada de trabalho com baixos salários e micro jornadas e centavos como remuneração. Direitos laborais reduzidos ou retirados. São mudanças que exigem respostas organizativas inovadoras e conteúdos propositivos para as proteções laboral, social, previdenciária e sindical se efetivarem.

Os sindicatos são atacados de maneira sistemática. Reduz-se o objeto da negociação, retira-se o poder de representação e negociação coletiva, inviabiliza-se o financiamento, além das recorrentes práticas antissindicais nos locais de trabalho e a campanha sistemática de desqualificação dos sindicatos. A resposta deve buscar a valorização dos sindicatos, ampliar as filiações, fortalecer o sistema de relações de trabalho e a negociação coletiva.

Os trabalhadores vivem as desigualdades profundas no mundo do trabalho, ampliando o fosso entre aqueles que contam com a proteção laboral da lei e dos sindicatos e aqueles que não têm nenhuma proteção. À desqualificação dos sindicatos se somam o individualismo, a meritocracia e o empreendedorismo como ideologia que ataca a solidariedade, a cooperação, o bem coletivo e público, o princípio da igualdade e da justiça. Afirmar o princípio de representar e proteger todos os trabalhadores, em todas as formas de ocupação e contratação, bem como inovar nas formas de organização e comunicação sindical, são respostas a serem promovidas para reunir, agregar e congregar.

A atual estrutura sindical brasileira também vem experimentando um processo de continuada fragmentação da organização, tem dificuldades para a renovação de quadros, restrições para o financiamento, redução do patamar de filiação, adversidades para inovar a comunicação e a organização na base. Interromper as iniciativas de fragmentação, atuar na sindicalização e inovação do trabalho de base e comunicação, orientar a reestruturação para a agregação sindical e unidade da base de representação são alguns dos desafios.

A superação desses desafios exige, no campo da governabilidade sindical e no contexto das suas lutas e história, uma estratégia de reestruturação sindical que elabore e implemente um novo projeto sindical intencionalmente direcionado para recolocar os sindicatos no centro da vida dos trabalhadores, afirmando-se novamente como escudo protetor coletivo, capaz de protagonizar movimentos, unir pela solidariedade e reunir para cooperar e lutar.

 

  1. Diretrizes para uma reforma sindical no Brasil

A seguir, sistematizamos em tópicos alguns aspectos e propostas que estão pautando os debates e que podem orientar a atuação e intervenção sindical dos trabalhadores.

  • Autonomia frente ao Estado para empregadores e trabalhadores instituírem, regularem e manterem a estrutura sindical e o sistema de negociação coletiva, suas regras de funcionamento, a forma de organização sindical e sua sustentação, os critérios e métodos de aferição da representatividade, a negociação e seus instrumentos de celebração de compromissos e de solução de conflitos.
  • A reestruturação do sistema de representação sindical deve ser orientada para um tipo de liberdade de organização que estimule a unidade dos trabalhadores, favoreça maior agregação sindical e que leve à ampliação da representatividade do sistema sindical brasileiro.
  • O sistema sindical deve organizar-se para promover relações entre trabalhadores e empregadores no sentido de fortalecer e favorecer a negociação coletiva em todos os níveis e abrangências, com instrumentos e procedimentos que conduzam à solução ágil dos conflitos individuais e coletivos no âmbito trabalhista, garantindo o direito de negociação coletiva para os servidores públicos no âmbito do Direito Administrativo.
  • Um projeto de mudança deve estar lastreado em um plano/processo de transição da atual para a futura estrutura sindical e sistema de negociação coletiva, assentado na cultura e na história das organizações e favorecendo o seu engajamento no processo de transformação.
  • O sindicato deve continuar sendo a base do sistema sindical brasileiro; as federações e confederações são instâncias de agregação de grau superior; as Centrais Sindicais instâncias de máxima agregação.
  • A organização no local de trabalho é voluntária e regulada pelas partes interessadas.
  • As entidades sindicais adquirem personalidade jurídica com o registro civil, sem mais necessidade da autorização do Estado.
  • As entidades sindicais serão organizadas por setor ou ramo de atividade econômica e não inferior ao município.
  • A contribuição dos sócios às entidades sindicais será definida em seus estatutos e recolhida em folha de pagamento.
  • A contribuição negocial (ou contribuição solidária do não sócio) será definida em assembleia e devida por todos os abrangidos pelo instrumento coletivo (sócios e não sócios), observados os limites fixados em lei, ou pela entidade nacional de regulação, e devida às entidades representativas.
  • A representatividade da entidade será aferida observando-se a razão entre o número de sócios efetivamente contribuintes e ativos em relação ao total de trabalhadores ativos no âmbito de representação (sócios e não-sócios do sindicato), e será mensurada periodicamente.
  • A entidade mais representativa (ou as mais representativas, a partir de uma linha de corte) terá o direito de representação do total de trabalhadores ativos no âmbito da negociação/base de representação.
  • A representação de todos os trabalhadores abrangidos no âmbito de negociação se dará pelas entidades que obtiverem taxa de representatividade igual ou superior a X% no âmbito de representação. O período de transição deverá prever o escalonamento temporal e progressivo da taxa de representatividade.
  • A entidade sindical mais representativa poderá obter a exclusividade de representação para o exercício sindical se os trabalhadores abrangidos pela negociação assim deliberarem por maioria, em consulta estruturada (plebiscito e outros meios). A exclusividade terá limite temporal e poderá ou não ser renovada.
  • As entidades sindicais passarão a integrar o sistema de negociação coletiva se, ao aferirem a representatividade, atingirem o percentual mínimo de sindicalização.
  • Os acordos e convenções, celebrados em negociação por entidades sindicais representativas, depois de aprovados pela maioria dos trabalhadores, atingirão todos os abrangidos no âmbito de representação, independentemente de filiação sindical.
  • Quando houver mais de uma entidade representativa no âmbito de representação, a mesa de negociação será única e com a representação unitária de todas as entidades que atingirem a representatividade, sob a coordenação da entidade sindical mais representativa.
  • Será mantida a vigência dos acordos ou convenções coletivas de trabalho no período das negociações coletivas, em prestígio à boa fé e à segurança jurídica das partes.
  • Desenvolver sistema de mediação e arbitragem privada e/ou pública, sem poder normativo.
  • Criar entidade nacional de regulação da estrutura sindical e do sistema de negociação coletiva que terá representação bipartite e paritária (empregadores e trabalhadores).
  • A entidade nacional de regulação será constituída por um Conselho bipartite e paritário e duas Câmaras (de trabalhadores e de empregadores) com atribuições específicas.
  • Cabe ao ente de regulação: aferir a representatividade (definir método de aferição); estabelecer normas específicas para o sistema de relações sindicais e de negociação coletiva funcionarem; regulamentar de maneira complementar o custeio sindical; criar câmaras de solução de conflitos que envolvam disputas intersindicais; criar procedimentos para verificar e coibir práticas antissindicais.
  • Servidores públicos: o fundamento geral é a Convenção nº 151 da Organização Internacional do Trabalho, que trata do direito de negociação coletiva para os servidores públicos. Deve-se considerar como referência o Projeto de Lei nº 397/2015, que “estabelece normas gerais para a negociação coletiva na administração pública direta, nas autarquias e nas fundações públicas dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

 

  1. Diretrizes para uma revitalização sindical

Indicam-se a seguir algumas diretrizes para a organização sindical desenvolver estratégias de mudança na perspectiva da reestruturação do sistema sindical brasileiro.

 

Renovação dos quadros

 

Promover um amplo processo de participação dos jovens – trabalhadores e trabalhadoras com menos de 30 anos de idade – na vida sindical, como ativistas, militantes e dirigentes.

A participação sindical da juventude que está no mundo do trabalho tem por objetivo inovar na formulação propositiva diante dos novos problemas e desafios que se colocam na vida dos trabalhadores, inovando e superando paradigmas de exclusão e desproteção.

 

O movimento

 Criar as condições organizativas para colocar os trabalhadores presentes nos novos contextos ocupacionais em movimento de luta. Ao se colocarem em movimento, debatendo, fazendo greves ou paralisações, protestando, investindo na formação e na organização, enfrentando adversidades, resistências e oposição, os trabalhadores vão se dando conta da complexidade da realidade e dos desafios que se colocam para os processos de disputas.

Reestruturar o sindicalismo a partir do movimento é dar prevalência às lutas a partir das quais se pensam as formas de organização, de estruturação dos recursos e de formação sindical dos ativistas. Pensar a partir do movimento é organizar uma gestão flexível e ágil, capaz de uma leitura sofisticada da realidade em tempo real para instruir escolhas estratégicas adequadas. Significa investir na produção de inteligência que planeja as lutas no contexto da interação com o outro,  desenvolver um estado de atenção, investir para criar ambiente de confiança na diferença, tolerância com os tempos e as formas de engajamento, é criar diante das oportunidades abertas pelo acaso e saber lidar com o imprevisível.

 

Representar a todos

O sindicalismo está desafiado a se reestruturar para ser o movimento de todos os trabalhadores e de todas as trabalhadoras inseridos no contexto da diversidade de formas de ocupação e contratação. Isso demandará construir uma agenda múltipla de demandas e de lutas, bem como imaginar novas formas de organização, elaborar propostas de solução para problemas que são inéditos para a agenda sindical clássica de assalariados e de servidores públicos.

Nesse desafio, ganha força a concepção de um sindicalismo dos trabalhadores que a todos reúne e une. Um tipo de sindicato que constrói bandeiras de luta unitárias e de todos os trabalhadores. Pode ser organizado por setor ou ramo, como o sindicato dos trabalhadores e das trabalhadoras da indústria, ou do comércio, ou dos serviços, ou da agricultura, ou do serviço público. Cada um organizado em uma rede sindical que garanta a presença nos locais de trabalho.

 

O local de moradia

 Deve-se considerar que o local de trabalho pode ser difuso ou inexistente. Atualmente, parte significativa da força de trabalho já não possui um local fixo ou conhecido de trabalho. Muitos circulam sem parar, outros tem uma inserção individual em unidades familiares ou em prédios/condomínios residenciais ou comerciais, outros trabalham a partir de casa (home office ou teletrabalho), ou mediados por aplicativos ou plataformas etc.

Por isso, o local de moradia passa a ser um referencial estratégico de contato organizativo das trabalhadoras e dos trabalhadores. A agenda de proteção laboral (direitos e proteções no trabalho) se combinará com a agenda de proteção social que será produto de políticas públicas (de seguridade, previdência, saúde, educação, transporte e habitação, entre outras) que precisam ser apresentadas e mobilizadas as pressões necessárias para entrar na pauta de debate deliberativo.

Diante disso, uma proposta ousada é organizar a presença sindical nos bairros de forma a permitir que os trabalhadores tenham uma unidade/centro sindical de referência. Essa presença pode ser a de máxima agregação – uma unidade sindical capaz de agregar e atender a todos os trabalhadores e todas as trabalhadoras.

Nesse sentido, coloca-se o desafio de um projeto de reestruturação patrimonial de todo o movimento sindical, articulado a partir de uma presença territorial estrategicamente posicionada.

Comunicação

 Uma dimensão fundamental da reestruturação é o desenvolvimento de um projeto inovador e ousado de comunicação sindical com os trabalhadores e a sociedade.

Um projeto de comunicação deve ser concebido a partir das oportunidades que as novas tecnologias oferecem de conexão em tempo real sem cabeamento, integrando dados, som e imagem. TV, rádio e jornal podem ser produzidos e potencializados. A integração da rede sindical de comunicação com as demais redes pode ser promovida. A produção de conteúdo de qualidade, com segurança e credibilidade, é um ativo que ganhará cada vez mais valor em um mundo que expande a mentira intencionalmente produzida para domesticar ou dirigir as massas.

 

  1. Um acordo sindical

 Para produzir essas diretrizes como estratégia de mudança é hora de declarar uma trégua sindical para que as pessoas, as energias e os recursos se concentrem na promoção das transformações. Essa trégua não é um tempo de esquecimento. Trata-se de um tempo de compromisso com a mudança sindical.

A proposta é um Pacto Sindical pela Mudança, um acordo geral para o qual todas as entidades são convidadas a aderir. Este Pacto teria os seguintes compromissos, em um prazo de cinco anos, entre outros:

  • Nenhuma nova entidade sindical será criada pela desagregação de categoria.
  • Nenhuma oposição sindical será encaminhada.
  • Todos se envolverão em projetos e processos de mudança, visando atingir muitos dos objetivos acima tratados.
  • As mudanças serão processuais, buscando a máxima participação.
  • Agregação, representatividade e cooperação serão fundamentos orientadores dos projetos de mudança sindical.

Se esse Pacto for construído e materializado, teremos um instrumento político inabalável para promover transformações que ficarão marcadas na linha do tempo histórico da classe trabalhadora.

Dessa forma, a geração futura poderá dizer: eles foram capazes de fazer o que parecia impossível, porque acreditaram, porque tiveram competência política, porque estavam movidos pelo interesse dos trabalhadores e das trabalhadoras e não por seus interesses pessoais ou específicos. Souberam fazer naquele período mudanças que marcaram a história das lutas dos trabalhadores desde então.