Novo Pacto Laboral

Novo Pacto Laboral

Christian Ingo Lenz Dunker

É Psicanalista e Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. É analista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Pós-doutor pela Manchester Metropolitan University, sendo professor convidado em mais de quinze universidades internacionais. Duas vezes agraciado com o prêmio Jabuti, por “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica” (Anablume, 2012) e “Mal estar, sofrimento e sintoma” (Boitempo, 2016).

 

Desde certo tempo, aprendemos que ter um trabalho tornou-se uma espécie de benefício. Uma concessão benemérita, quase uma “prenda”, de quem escolhe montar um negócio e “gerar empregos”. No fundo, cada um deveria entender que mesmo os que estão empregados devem pensar a si mesmos como dirigentes e gestores do próprio negócio. Depois da democracia racial, chegamos à democracia empresarial. Ainda na faculdade, aprendi com o grande Sigmar Malvezzi que deveríamos nos acostumar com a ideia de um mundo dominado por formas de vida que não trabalham, ou pelo menos não no sentido de um contrato formal para quem vende livremente sua força de trabalho no mercado livremente organizado por um contexto de livre mediação jurídica e institucional. Não é que o trabalho iria acabar, mas ele mudaria de forma, com novos empregos gerados pelas novas tecnologias.

Aplicava-se, assim, a máxima freudiana de que, como nunca sabemos exatamente o que perdemos, não estamos em condições para avaliar com justeza o que ganhamos. Mas isso não significa que o progresso, como ilusão perspectiva ou indeterminação controlada, deva ser revertido em pessimismo e niilismo, pois, afinal, não saber não é o mesmo que saber que não. Autores como Stephen Pinker e Yurval Harrari têm se notabilizado por popularizar dados impressionantes sobre a melhoria da qualidade de vida, notadamente no último século. Em debate recente com o primeiro, ele chegou a questionar o crescimento da desigualdade e da inequidade de distribuição de recursos, econômicos e simbólicos como direitos humanos, quando olhamos para a redução brutal da pobreza, particularmente na China e na África.

A única objeção à teoria do ritmo expansionista, da redução de recursos e de empregos, remanesceria na devastação ambiental. Antes disso, devemos nos conformar com o argumento “socialista” de que estamos todos melhorando, e, se você não sente isso, é porque está em uma posição privilegiada e não na daqueles que estão, pela primeira vez, tendo acesso à água encanada, perdendo menos filhos para a mortalidade infantil ou morrendo devido a doenças facilmente tratáveis. Antes disso, devemos confiar nos efeitos sistêmicos do trabalho desregulamentado, precarizado, intermitente, pejotizado, empreitado ou subempreitado, ademais home office.

Nesse sentido, parece, cada vez mais, paradigmático o caso de um jovem recém-contratado por uma empresa de tecnologia que desenvolveu um programa capaz de fazer suas funções laborais, portanto, de substituí-lo integralmente. Ele se deixava “trabalhar” em alta performance, entregando os resultados esperados, tão somente ao deixar rodar o seu programa, sem informar obviamente que ele tinha desenvolvido tal tecnologia. Caso análogo ao narrado por uma mineradora italiana que operava, no norte de Moçambique, contratando massivamente trabalhadores locais não especializados. Depois de algum tempo, a companhia começa a enfrentar um grande absenteísmo, prejudicando a regularidade da produção. Inquerindo-se os contratados, obteve-se uma resposta surpreendentemente pré e pós-moderna: “Eu não vim trabalhar, mas isso não é motivo para me despedir, afinal mandei meu primo no meu lugar e ele é tão capaz quanto eu de fazer o serviço.”

Essa curiosa convivência entre o pré-moderno e o pós-moderno caracteriza também a situação brasileira quando se a considera sob a perspectiva de implantação do neoliberalismo. Lembramos que esse movimento teórico nascido dos escombros da Segunda Guerra Mundial, com Von Misses (1881-1973) e a sociedade de Mont Pellegrin, opunha-se tanto ao liberalismo de Keynes (1883-1946) quanto ao comunismo e suas diferentes tendências de Trotsky (1879-1940) e Stalin (1878-1953) e os anarquistas. Poucos sabem, mas o neoliberalismo não é só uma teoria econômica, mas é também uma psicologia, mais precisamente uma praxeologia como se desenvolveu no interior da Escola Austríaca e depois foi absorvida a um programa de psicologia científica. A colaboração entre Hayek (1899-1992) e Popper (1902-1994), seus desdobramentos na Escola de Chicago, com Milton Friedman (1912-2012) e Gary Becker (1930-2014) com a teoria do capital humano e da distribuição do tempo dentro da família, injetam, sub-repticiamente uma psicologia no interior da economia. Por essa teoria, o sujeito humano tende a agir racional e propositadamente para o aumento da satisfação, do conforto e da felicidade. Agimos sempre como indivíduos e o Estado está aí para contrariar uma tendência natural e universal. Nenhuma tentativa de contrariar sua natureza pode ser bem-sucedida. O fundo e o contraexemplo contra o qual o neoliberalismo floresceu são os estados totalitários da Europa e a interpretação da crise mundial de 1929. Tratava-se de pensar uma teoria econômica contrária ao nazismo alemão, ao fascismo italiano, ao nacionalismo japonês e ao stalinismo soviético, mas também de evitar as crises periódicas do capitalismo. Surgiu daí o equívoco histórico de considerar o nazismo um partido de esquerda porque ele era nacional-socialista. O neoliberalismo opunha-se, portanto, tanto ao indivíduo liberal e sua esfera de liberdade regulada pela lei quanto ao comunismo e sua concepção coletiva de poder e de produção e de gestão.

Ora, a teoria neoliberal permaneceu hibernando desde os anos 1940, até ser ressuscitada e implantada por Augusto Pinochet no Chile, em 1973. A Escola de Chicago deu sua anuência para esse experimento defendendo que uma ditadura de direita é justificável se isso ocorrer em nome da abertura dos mercados. O argumento foi empregado por Roberto Campos, ministro da economia, durante o regime militar brasileiro, para amenizar os efeitos aterradores da perda da democracia. Paulo Guedes, atual ministro da economia, como se sabe, estudou em Chicago e era assessor de Saleme, durante o golpe que derrubou Salvador Allende e privatizou as universidades e os fundos de pensão, levando à divisão e ao colapso social que agora tenta se refazer com a redação de uma nova Constituição.

Apesar disso, o programa neoliberal começa a ser implantado no Brasil apenas em 1994 com o governo Collor. No entanto, rapidamente, percebeu-se que, junto com o neoliberalismo, vinha uma espécie muito arcaica de compromisso entre o Estado e as piores e mais regressivas forças aristocráticas brasileiras. Continuava, assim, a saga da tentativa de implantação da mais moderna teoria econômica, o neoliberalismo, pelas mãos dos piores e mais atrasados donos de condomínios brasileiros. Uma parte necessária dessa implantação passava pela redução dos excessivos mecanismos de proteção social, infiltrados na Constituição de 1988, como um programa liberal que tentava implantar no Brasil dos anos 1990 o Estado de Bem-Estar Social europeu dos anos 1970. Da mesma forma, o novo neoliberalismo de Guedes tenta implantar um sistema de austeridade fiscal e monetária, que chegou ao fracasso na crise das subprimes imobiliárias americanas de 2008 e no impasse grego, irlandês e português como sintoma da Unidade Europeia, dos anos 2010. Voltando os passos nessa história, conseguimos entender por que um partido social-democrata como o PT se transformou em um protótipo do comunismo vermelho revolucionário. Isso depois de ficar 12 anos no poder sem apresentar sinais evidentes de estatismo, de controle de mídias, de perseguição a minorias ou de qualquer ameaça ao funcionamento institucional ou constitucional: mesmo depois de mais de uma década de soluções de compromissos, de alianças com o mercado, de coalizões políticas e de concessões aos interesses de grupos monopolistas e condominiais, como as empreiteiras, foi possível produzir um PT comunista.

Típico do liberalismo keynesiano é a defesa do bem-estar social, da sociedade democrática para um número crescente de pessoas, como projeto democrático e igualitário de criação de cidadãos. Ou seja, entre pensarmo-nos como uma cultura que precisava passar do atraso para a cidadania republicana, quisemos passar do liberalismo, que nunca houve realmente, para o neoliberalismo, que tinha sido a última moda na Europa … dez anos antes. Esse incrível truque de ilusões assíncronas só pode acontecer, porque uma parte do país se acreditava morando em Miami ou participando do empresariado nacional com seu carrinho de pipoca, enquanto isso outra parte estava furiosa ao descobrir o tamanho real da diferença social, racial e econômica. Mais além dessa oposição, uma terceira parte do país só concordava com a ausência de alternativas e com o ódio contra instituições que pareciam ter cem anos, quando, na verdade, estavam concluindo apenas a primeira geração de reconstrução da experiência democrática.

Podemos voltar agora ao equívoco dos anos 1930. A crítica dos neoliberais ao Estado serviria melhor como crítica à burocracia de Estado – o poder paralelo à lei paralela ou informal que, no Brasil, adquiriu a textura do condomínio a partir de 1973, mesmo ano da implantação prática do neoliberalismo. Mas dito dessa forma, o melhor do neoliberalismo confunde-se com o que já dizia Trotsky e o que voltarão a dizer Zizek, Graeber e Mark Fischer, nos anos 2000. A crítica neoliberal ao liberalismo serviria melhor se ela mostrasse como o Estado, longe de ser um mau capitalista, está realmente ocupado por interesses que não são de todos, mas de alguns que conseguem se organizar rumo ao monopolismo. O monopolismo de um lado e a hipertrofia do poder dos síndicos por outro eram críticas independentes, mais bem articuladas por liberais e comunistas, mas que, para os neoliberais, se reuniam na mesma coisa equivocada. No fundo, os mediadores de regulamentos, os gestores de leis e aplicadores da lei, com suas exceções e com sua regulação da temporalidade dos processos, foram facilmente cooptados por quem podia pagar mais. Dos melhores centros de pesquisa universitários às agências reguladoras e os Tribunais, supremos ou terrenos, nada poderia resistir à força coercitiva da produção de fatos, quando se neutraliza a crítica como comunismo e pessimismo mal-intencionado.

No Brasil, isso representou a indústria do sindicalismo pelego, o negócio da extorsão trabalhista e, em síntese, um sistema tributário que acasala monopólios com gestores da lei. De tal maneira que, tanto a renovação do pacto pelo progresso dos empregos, baseado no desenvolvimento do país, quanto a luta contra a corrupção, baseada na extinção do poder paralelo não republicano, pareciam ter fracassado. Mas a eleição de um falso neoliberalismo só foi possível por meio da retenção do que o neoliberalismo tinha de essencialmente eficaz – uma política de administração, no duplo sentido do termo, do sofrimento. Enquanto liberais e comunistas entendiam que era preciso reduzir o sofrimento das pessoas, seja porque isso facilita os negócios, seja porque isso une as pessoas em ideais coletivos, o neoliberalismo afirma pragmaticamente, ou melhor praxeologicamente, que aumentar o nível de sofrimento das pessoas aumenta o seu nível de produtividade. Nada de zona de conforto, nada de segurança ou garantia, pois isso amolece o espírito de busca de excelência, de renovação e de super engajamento no trabalho. A tolerância com a predação no trabalho se desdobra para o meio ambiente. O incentivo para a competição, para a autoavaliação e para a autosseleção consegue interiorizar tarefas da empresa para a interioridade do trabalhador, assim como a praticidade e o “barateamento” faz o consumidor assumir alegremente tarefas que caberiam originalmente à empresa. Ele pode agora assumir o negócio jurídico transposto em uma cultura de denúncia, de culpa e de instrumentalização das próprias limitações e vulnerabilidades. Assim também o ambiente de trabalho, quanto mais institucionalizado, torna-se também mais depressivo, traumático, ansioso e regado à medicalização e ao doping, formal ou informal. Bônus erráticos,  big brotherização, microgestão, avaliacionismo, métricas inconstantes de eficácia e de efetividade, certificações e compliances formaram a cultura do coaching e da operacionalidade de processos. Neurociências, frekonomics, genética comportamental, behaviourismo negocial, protocolos, consensos confirmavam, lentamente, a psicologia por trás do neoliberalismo. Isso implicava a gradual substituição de tendências clássicas da psicologia, como o behaviorismo skinneriano, a fenomenologia e a psicanálise, por práticas como a psicologia positiva, a constelação familiar e as palestras de motivação. Esse monismo da ciência e do saber levará alguns a afirmar que não há nenhuma outra teoria econômica. O fim da história era também o fim da filosofia e da controvérsia sobre a história, assim como o fim das disputas cognitivas. Elas deveriam se curvar ao meta-princípio da operacionalização e da efetividade, bem como ao da identificação da institucionalidade científica com o poder de coerção cognitivo e de exclusão de alternativas. Assim como o liberalismo clássico e o comunismo, a ideia de refletir a partir do princípio de que as prerrogativas cognitivas estabelecidas não devem conviver com diversidade e com conflito, mas substituídas por concepções, inerentemente superiores, nas quais o investimento seria mais seguro.

Isso nos ajuda a entender e a confirmar a afinidade discursiva e histórica entre neoliberalismo e tolerância com a violência. Afinal, essa é a única face da lei, antes função exclusiva do Estado, que não pode ser inteiramente empresariada. Seja como biopolítica, seja como necropolítica, o uso da violência não passa de mais um caso da relação entre meios e fins. Não há nada de sagrado nem de inusitado em nenhum comportamento, particularmente no comportamento verbal. Isso começa pela interpretação de que se alguém está desempregado, segundo o liberalismo ou o socialismo, isso representa um problema para todos, ao passo que, para o neoliberalismo, isso é um problema do indivíduo que não soube produzir sua própria empregabilidade.

Por isso, precisamos suspender um pouco a reatualização constante de pactos liberais e tentar estabelecer um novo pacto laboral, ou seja, um retorno ao trabalho como função simbólica na vida das pessoas e não apenas como meio de produção ou de acumulação de riquezas. Precisamos entender que o negócio da produção nos foi apresentado, nos últimos 40 anos, como secundário diante do negócio da financeirização. Mas a ideia generalizada de que o dinheiro trabalhará para você depois que você trabalhar para ele com afinco e sagacidade simplesmente não provê nenhum lugar nem nenhuma ocupação para milhões de pessoas. Cedo ou tarde, elas manifestarão sua insatisfação. Precisamos de uma teoria econômica que dê conta disso e de um pacto laboral que lhe esteja à altura.

*Artigo escrito para o livro “Cuidadania – Construir coletivamente o igual no diferente”.