O real sentido de uma sociedade plural

O real sentido de uma sociedade plural

Tatiana Moreira Rossini de Oliveira

Advogada, Especialista em Direito Individual e Coletivo do Trabalho. Sócia do Melo e Isaac Advogados, escritório fundador da Rede Lado.

O Brasil passa por um momento crítico no que se refere ao processo de construção social de espaços plurais e democráticos. Há um retrocesso nas políticas inclusivas que vinham sendo construídas nos últimos anos, a custo de muita dor e luta. Nosso crescimento sempre foi muito lento e invariavelmente colide com interesses opressivos que vedam a redução do abismo entre classes sociais. Na sociedade contemporânea, consolidou-se uma pluralidade de aparências, que não atinge a função de retratar os reais interesses de minorias diversas, de modo a permitir-lhes espaços de representatividade para a defesa de seus direitos. Nesse sentido, instituições democráticas vêm desenvolvendo o importante trabalho de assegurar uma equidade de gênero e de diversidade que não se limite à implementação de cotas nas organizações públicas e privadas, mas que permite assegurar voz ativa a todos.

Enraizados por uma herança cultural racista, sexista, homofóbica, seletiva e intolerante, nossa evolução no processo de inclusão social caminha de forma lenta e sempre se retrai em face da possibilidade de ascensão do “diferente”. Temos recentes políticas afirmativas, lei de cotas e as instituições de representação social já se constrangem em não apresentar, em sua composição, representantes de gênero, de raça e de religião diversos. Porém, entre esse pluralismo de “faz de contas” e a efetiva garantia de inclusão em espaços de gestão e de representação de interesses, há uma grande diferença. Essa distância entre o aparente e a realidade se destaca principalmente na iniciativa privada e nos meios corporativos.

A coexistência de situações como discriminação social no acesso ao emprego, divisão sexual do trabalho, baixa representatividade feminina em cargos de liderança, conflitos interculturais, intolerância religiosa, violência contra a população LGBTQIA+, dificuldades de inserção dos jovens no mercado de trabalho, afastamento dos funcionários com mais de 50 anos de idade do mercado profissional, bem como baixa acessibilidade de pessoas com deficiência, dentre outros, demonstram como estamos distantes do conceito de sociedade plural.

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — IPEA[1], no âmbito da administração pública federal, os homens ocupam 75% dos cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) nível 6 e 7, os mais altos do governo. Analisando os dados pelos critérios de gênero e de raça, verifica-se que os cargos são majoritariamente ocupados por homens brancos (57%), seguidos pelas mulheres brancas (20%), homens negros (14%) e, por último, as mulheres negras, que ocupam somente 4% desses cargos. 

Em relação à acessibilidade, de acordo com o último Censo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE[2] , o Brasil conta com 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, dentre as quais apenas 486 mil encontram-se com vínculo de trabalho formal registrado perante o Ministério da Economia. A população integrada no mercado de trabalho corresponde a 1% dos empregados com registro de emprego formal, que perfaz o total aproximado de 46 milhões. Estamos falando de um grupo social que tem uma política assistencialista desenvolvida, com imposição de contratação por meio do sistema de cotas, entretanto, a discriminação ainda impede o acesso dessa população ao mercado de trabalho.

Em face dessa triste constatação, organizações democráticas vêm desenvolvendo o importante papel de dar voz a ideais de representatividade, pela criação de políticas concretas que permitam assegurar a essas pessoas o direito de posicionar-se, respeitando e defendendo as suas convicções nos espaços que ocupam. Defendem que essas tenham paridade de poderes de decisão dentro das organizações e sejam reconhecidas pelos valores que agregam. Somente assim, suas ideias e seus posicionamentos se refletirão no processo de transformação da sociedade que buscamos. Esse processo vai além de como os indivíduos se identificam, mas impacta também como os outros os percebem. 

Integro a Rede Lado, uma instituição que conecta 24 escritórios de advocacia, espalhados pelo Brasil, somando cerca de 300 advogados com ideais democráticos e que defendem a inclusão social baseada no respeito à dignidade da pessoa humana. A Rede Lado instituiu um Grupo de Trabalho voltado à implementação de uma construção social fundamentada no respeito à diversidade. Entendemos que, mediante o poder de representatividade, de influência política e de atuação coordenada desse coletivo, temos o dever de protagonizar essa luta para que a diversidade deixe de ser um ideal e passe a se tornar uma realidade e bem comum à vida de todos. A discriminação é uma violência ao outro e não podemos mais fazer vistas grossas a atitudes cotidianas que maquiam uma realidade que agride o indivíduo no seu íntimo. 

O grupo de trabalho é liderado por cerca de 15 advogados que exercem o desafio de destacar, de maneira incessante, a necessidade de respeitarmos as diferenças e de assegurar o aculturamento e a identificação de conceitos para o desenvolvimento de ações concretas e legítimas que possam transformar a realidade. Acredito que não precisamos ser todos iguais, mas não podemos segregar os diferentes, mesmo que inconscientemente. Já que, nesse processo, socialmente expelimos e criticamos as diferenças; criamos mitos para consolidar os preconceitos e inseguranças de uma perene maioria.

Em meio a tantos desafios, é preciso segurança nas convicções, já que, nesse caminho, os que defendem os divergentes são vistos como ofensores de uma hipócrita integridade da ordem social conformista. Portanto, a resistência é necessária, já que se trata de uma luta comum a todos, e que entendo que precisa ser conduzida coletivamente. As minorias isoladas não conseguirão ocupar espaços de destaque. A força das ações conjuntas é essencial para uma trajetória de sucesso e de formação dos valores a serem construídos em uma sociedade efetivamente plural.

Eu, como mulher branca, privilegiada, atuando na gestão de uma organização, sei que não ocupo o lugar de fala de diversas pessoas, porém, sob a minha perspectiva, sinto que tenho a missão de utilizar o espaço que conquistei para defender a construção de uma sociedade digna e democrática, para que meus filhos possam exercer seus direitos e fazer escolhas de maneira livre. Temos o dever de retribuir às minorias o direito de se erguerem, serem ouvidas e terem ingerência sobre as decisões que repercutirão diretamente sobre suas vidas. É o mínimo que podemos fazer já que historicamente nos apropriamos por tanto tempo de sua força de trabalho e de sua cultura.

Nesse cenário, o papel de associações como a Rede Lado é necessário. A sua atuação global, conectando minorias; promovendo uma conscientização de que as políticas atuais relacionadas à diversidade não são efetivamente inclusivas, tampouco asseguram igualdade de oportunidades, aceleram o processo de transformação de maneira organizada. Assim, disseminam uma cultura de democracia sobre o ponto de vista plural, agregando diversas realidades e construindo de maneira sólida os princípios e os valores que servirão de alicerces para a sociedade que buscamos, mediante ações concretas e legítimas.

Com isso, para além de cotas, precisamos assegurar que grupos sociais diversos tenham acesso à educação, a oportunidades de crescimento e à paridade nos processos de ascensão. Essa premissa deverá abranger a todos os setores da sociedade, tanto por meio de políticas públicas como em meios privados. Esse entendimento parte de ideais advindos de princípios internacionais e constitucionais, não havendo justificativa para que sejam boicotados. Não podemos mais viver na mediocridade de acreditar que uma empresa que emprega um homossexual, uma mulher e um negro é plural!

Para tal, os objetivos políticos e econômicos, que norteiam o país, deverão priorizar a legitimidade da representatividade desses grupos sociais, destacando os valores que agregam; compreendendo os contextos socioculturais em que atuam e a sua capacidade de gerar lucros. Só assim esses terão políticas que dignifiquem o seu trabalho e reduzam o abismo social na possibilidade de ascensão na economia formal.

Segundo o estudo intitulado “Diversity wins: How inclusion matters”[3], promovido pela empresa de consultoria McKinsey & Company, equipes diversas promovem ambientes corporativos mais criativos, mais inteligentes, mais engajados, mais inovadores e, por consequência, melhores experiências para os consumidores finais e melhores resultados para os negócios. O estudo teve como referência 12 países e abrangeu cerca de 1.000 empresas, concluindo que as companhias que possuem diversidade étnica racial na alta liderança têm 33% mais propensão à lucratividade. Já aquelas que têm diversidade de gênero têm de 22% a 23% mais chances de serem lucrativas. Isso ocorre por diversos fatores, desde maior confiança e prestígio dos consumidores até a formação de um time mais forte e unido com todas as habilidades necessárias para despontar no mercado.

Conforme vem ocorrendo no mercado internacional, o universo corporativo brasileiro terá que abrir espaço e permitir que não apenas o seu espelho seja o reflexo do sucesso. Outros prismas precisam protagonizar espaços, se expressar e defender seus interesses. Para alcançar esse ideal, a exigência de políticas concretas que permitam o acesso às diversidades de vozes deve ser imposta a essas organizações, senão pelas autoridades competentes por meio de normas formais, que a sociedade exija esse comportamento de maneira definitiva.   

Em meio a tantas falas sobre evolução e progresso, não podemos aceitar um comportamento cotidiano de intolerância que retrate o medo e a insegurança, diante da possibilidade de mudança do que consideramos confortável ou ideal, sem considerar os paradigmas insertos nesses conceitos. O medo da perda de controle dos conceitos estabelecidos pela maioria conservadora ainda assusta a sociedade contemporânea, que acaba estereotipando e “amaldiçoando” o diferente, não raras vezes utilizando-se de violência. Essa situação não pode coabitar com um cenário de crescimento.  As pessoas precisam ser ouvidas e respeitadas pelo que agregam, independentemente de qualquer tipo de classificação que tentem lhes impor, pois faz parte do processo evolutivo e natural da humanidade. Nesse contexto, saber nos colocar no lugar do outro; entender as suas dores e nos juntar para alcançar a sua liberdade é uma grande conquista de educação e de afirmação de direitos.

Assim, a consciência de que um universo se constrói ao redor da pequena elite branca, machista, sexista, homofóbica e intolerante é essencial para pararmos de acreditar que apenas os interesses e os preconceitos dessa classe devem prevalecer. Repudiar o que não conhecemos é uma atitude covarde, de quem teme a possibilidade de reconhecer que a identidade não é um conceito estático.

Diante do cenário apresentado, todos temos o dever de compreender o conceito de pluralidade e de defender a construção de uma sociedade que represente efetivamente a diversidade, proporcionando a todos o direito de se fazer representar. Essas premissas são essenciais no processo de mudanças, que, desnudadas de preconceitos e revestidas de respeito, assegurarão uma transformação consolidada, nos permitindo experimentar o real conceito da democracia e de dignidade.

[1] Mesquita, Camile. S. Desigualdade de gênero na remuneração persiste na burocracia federal brasileira. 2020. Disponível em: http://anesp.org.br/todas-as-noticias/2020/3/11/desigualdade-de-gnero-na-remunerao-persiste-na-burocracia-federal-brasileira. Acesso em 22 ago 2021.

[2] Obtido em https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/20551-pessoas-com-deficiencia.html Acesso em 22 ago 2021

[3] Estudo disponível na íntegra em https://www.mckinsey.com/~/media/mckinsey/featured%20insights/diversity%20and%20inclusion/diversity%20wins%20how%20inclusion%20matters/diversity-wins-how-inclusion-matters-vf.pdf Acesso em 22 ago 2021.