PCD: chame-nos pelo nosso nome – Uma questão de autoafirmação e de cidadania

PCD: chame-nos pelo nosso nome – Uma questão de autoafirmação e de cidadania

 

Meirivone Aragão

PCD, Advogada sergipana e integrante da Rede Lado.

 

No ano de 2020, praticando o isolamento social em razão da pandemia da Covid19, dei-me conta da importância do engajamento social e da expressão das identidades, que compõem o mosaico da nossa existência. Embora a “d”eficiência seja assunto bem resolvido na intimidade, carece de cuidado relacional. Afirmar-me como Pessoa Com Deficiência é uma descoberta política, que define escolhas e ações como cidadã do meu país e aprimora as relações sociais. 

Encarar o assunto é um desafio, tenho bem ciência… fica um certo incômodo, uma vontade de sair do lugar e apagar a conversa. É a agonia da falta de informações, a angústia natural diante do desconhecimento, mas, se você aceitar em seguir comigo nessa prosa, só de saber o nome certo, já vai se sentir mais confortável e, quem sabe, ficar para o jantar. Parece bobagem, mas atravessaremos juntos uma barreira importante.

A inspiração para essa prosa veio da participação em um evento do escritório LBS, onde estavam as meninas do Cabaré Feminista – um manifesto artístico feito por mulheres e para mulheres, com canções e poesias que trazem a reflexão e o debate sobre a luta por igualdade – como elas se definem. Fiquei matutando sobre a dor e a delícia de se expressar quem se é. Entre conversas e cantorias, fui percebendo a importância de falar da imagem projetada ao mundo, da demarcação do lugar de fala como ato político de afirmação do direito de existir.

Como nos chamar é uma questão que vem evoluindo na legislação e na sociedade: “aleijados”, pessoas incapacitadas, inválidas e excepcionais ou simplesmente deficientes são termos que refletem o olhar depreciativo e segregacionista a partir do qual o outro foi acostumado a nos definir e carecem ser eliminados da nossa linguagem. A mudança é um processo educacional que demanda vontade. A discussão racial e das questões de gênero tem sido uma excelente escola de aprendizado sobre a importância dos nomes adequados para fazer todo mundo se sentir em casa.

A legislação avançou primeiro para a expressão: “Pessoa Portadora de Deficiência”, que também não se mostrou correta, por desconsiderar que a deficiência não é mais compreendida como intrínseca ao ser, mas como resultado das barreiras do ambiente físico e social, que, quando eliminadas, apagam a letra “d” e nos transformam em igualmente eficientes. A deficiência, portanto, muda de perspectiva, sai dos corpos dos indivíduos e vai para a sociedade que não desenvolve os elementos para a eliminação das barreiras que impedem a igualdade.

Por sua vez, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao direito interno brasileiro com status de norma constitucional, em 2009, trouxe a mudança para o termo digno: “Pessoa Com Deficiência – PCD”, junto com valores, com princípios e com garantias que reafirmam o direito à igualdade e à dignidade dessa parcela da população. No Brasil, a Lei nº 13.146/2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, é o grande marco para a visibilidade das Pessoas Com Deficiência na sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, preconizada pela Constituição federal de 1988.

Na expressão “Pessoa Com Deficiência”, a menção à “pessoa” é necessária pelo fato de que`, em muitos momentos da história, não fomos considerados como tal, tendo a sociedade flertado com a eugenia – assim mesmo, sem acento – teoria que busca melhorar a raça humana pela eliminação dos indivíduos diferentes do “padrão” aceitável na sociedade ou pela interferência genética, com o fim de evitar o seu nascimento. 

Antepassados dessa geração, alguns ainda vivos, testemunharam nosso trajeto para os fornos da “solução final’’ adotada pelo Nazismo, em prol da “melhoria da raça”, por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Com indignação, constata-se que esse movimento não morreu e possui crescente número de adeptos, inclusive no Brasil, onde o atual presidente não esconde a admiração pelo representante maior. Nenhum dos dois nomes será citado aqui, em respeito à minha e à dignidade das pessoas com deficiência ao longo da história. Não foi fácil aceitar o voto de gente próxima neste governo, mais difícil ainda é conviver com quem continua defendendo.

Outro aspecto da eugenia é o planejamento familiar de pessoas brancas, cis, abastadas, com vistas à seleção genética da sua prole. Mais perto de nós está o exemplo de quando a diferença é detectada no primeiro exame de ultrassom em gestantes. E aqui não estou discutindo a questão do aborto, que defendo como direito da mulher, mas da opção de uma sociedade pelo descarte de indivíduos em razão da diversidade da forma, em vez de se debruçar com seriedade sobre a inclusão, com toda a riqueza de possibilidades, sem precisar romantizar a nossa luta. Há exemplos ainda mais próximos, como o da eleição de um paciente para disputar respiradores ou um leito de UTI, na pandemia. Quem a sociedade marca para morrer?[1]

Infelizmente, há escolhas de quem habita o Planeta Terra no ano de 2020 que implicam o direito à vida de quem nasceu com um corpo diferente do normal determinado como padrão aceitável. E olhe que, se a gente observar de perto, como diz Caetano, mas bem de pertinho mesmo: “ninguém é normal”.

Superada a barreira do nascimento, não existem dúvidas de que a realidade continua sendo cruel e distante da proposta constitucional. Pelo Censo de 2010, somos cerca de 6,7%[2] da população, sendo que apenas 1%[3] está no mercado de trabalho. Os estudantes com deficiência representam 0,46%[4] dos estudantes matriculados em instituições de Ensino Superior no Estado de São Paulo. Dados preocupantes, mostrando que o caminho da inclusão é longo. Para transformar esse cenário, faz-se urgente e necessário o diálogo.

Nesse sentido, a afirmação das Pessoas Com Deficiência contribui gerando visibilidade; colocando a gente na roda de conversa do bar, das famílias, das políticas públicas, da cultura e dos poderes constituídos; demarcando nosso espaço na construção de uma sociedade eficiente e preparada para lidar com as possibilidades que a diversidade agrega; florescendo juntos para um mundo mais justo, inclusivo e repleto de gente disposta a abraçar a própria humanidade. Chame-nos pelo nosso nome.

 

 

*Texto atualizado do original na Carta Capital. 

 

[1] https://brasil.estadao.com.br/blogs/vencer-limites/coronavirus-eua-investigam-recusa-de-respiradores-a-pessoas-com-deficiencia/

[2] https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cpd/documentos/cinthia-ministerio-da-saude

[3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-08/apenas-1-dos-brasileiros-com-deficiencia-esta-no-mercado-de

[4] http://universodainclusao.com.br/sem-categoria/2020/05/30/educacaobasededadosdosdireitosdapessoacomdeficienciatematualizacao/