Pluralismo sindical: o exemplo do sistema sindical italiano

Pluralismo sindical: o exemplo do sistema sindical italiano

Francesca Columbu

Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie – CCT Campinas e Vice-Presidente do Instituto Ítalo-brasileiro de Direito do Trabalho.

Tratar do sistema sindical italiano em poucas páginas é um desafio e tanto. As reflexões que seguem têm como objetivo ilustrar um quadro geral das relações coletivas, com os votos de que seja uma leitura instigante e profícua para quem deseja ampliar – segundo a metodologia comparada1 – o conhecimento de diferentes modelos político-culturais da organização sindical e seus desafios contemporâneos.

O sistema sindical italiano é marcado por duas características, uma consequência da outra: a escassa regulamentação legislativa e a constante e complexa busca do equilíbrio entre autonomia privada coletiva, segurança jurídica e o pleno exercício do direito de liberdade sindical.

Sobrevivente do corporativismo fascista, o sindicato desde logo se mostrou resistente à intervenção legislativa na sua regulamentação. É suficiente pensar que a principal norma constitucional dedicada ao sindicato (art. 392) nunca recebeu atuação legislativa3, além do caput que proclama o direito de liberdade sindical, os incisos sucessivos não obtiveram êxito entre as forças sociais, rebeldes a qualquer controle regulatório de tipo heterônomo.

As relações coletivas do trabalho pós-corporativistas estruturaram-se, portanto, segundo o exercício mais amplo do direito de liberdade sindical. Optou-se por um modelo

pluralístico-conflitual de livre competição entre grupos: “com a ideia de que o equilíbrio – mesmo instável – conquistado duramente por meio da autônoma composição privada dos conflitos coletivos é preferível ao equilíbrio que não seja fruto do livre confronto entre as partes”.4

Em razão da [quase total] ausência de normas de origem estatal, o sistema sindical italiano pode ser qualificado, portanto, como anômico. De fato, supriu-se à ausência do legislador, principalmente, por meio da constante intepretação da Corte Constitucional e da Corte de Cassação, bem como por meio das regras estabelecidas nos acordos interconfederais periodicamente estipulados entre as confederações sindicais. Nesse sentido, tal ramo do direito se desenvolve fora do perímetro constitucional, construindo um sistema de normas fruto da autonomia privada coletiva que será definido por Gino Giugni como “ordenamento intersindical”.5

Tradicionalmente, as organizações sindicais constituem-se segundo o modelo confederativo, entretanto, não há uma regra que as obrigue nesse sentido. As confederações sindicais italianas são entidades de cúpula de tipo intercategorial – similares, neste sentido, às Centrais Sindicais no Brasil – e têm como base geográfica de referência o territorial nacional. As confederações reúnem em seu interior as Federações de Categoria, que também têm base nacional de atuação.6 As Confederações, sendo entidades de representação geral, desempenham principalmente a função de coordenação política das federações e de interlocução com o Poder Público e com as organizações coletivas patronais.

Como acima mencionado, o art. 39 da Constituição nunca obteve atuação legislativa. Portanto, a dinâmica das relações coletivas é regida pelo direito dos contratos (autonomia negocial, formação da vontade negocial, eficácia jurídica no tempo e no espaço) e pelo poder social efetivo de mobilização/representatividade que as Confederações comprovam.

Existem, essencialmente, três tipos de normas oriundas da autonomia privada coletiva: 1) os acordos interconfederais, que representam a auto-regulamentação que as organizações profissionais, em conjunto com as entidades patronais, estabelecem com relação às regras e aos níveis da negociação coletiva, regras sobre eleições dos canais de representação laboral na empresa, critérios de representatividade negocial e, quando há a

participação do Governo, regras de concertação social7; 2) o Contrato Coletivo de Nacional de Trabalho, que é a principal fonte autônoma de regulamentação das condições de trabalho de cada categoria8, e é, tradicionalmente, assinado entre Federação de categoria e associação patronal; 3) o Acordo coletivo de “proximidade”, estipulado em nível de empresa ou territorial (também conhecido como nível “descentralizado” ou “de segundo nível”). Esta tipologia de acordo de empresa representa a articulação em nível específico da ação normativa sindical9.

A questão, provavelmente, mais “espinhosa” ligada ao direito sindical é a da eficácia subjetiva da negociação coletiva. Em um sistema de pluralismo sindical, no qual os seres coletivos atuam como associações de direito privado e cujas negociações coletivas não possuem eficácia erga omnes, como determinar os destinatários das normas coletivas? A regra de base estabelece que ao trabalhador se aplica o contrato coletivo estipulado pelo sindicato ao qual ele estiver filiado. Na ausência de filiação, existem mecanismos de extensão da eficácia da norma coletiva: a) o contrato de trabalho pode prever expressamente uma cláusula que indica o CCNL de referência; b) pode existir uma adesão implícita ao conteúdo da norma coletiva por uma aplicação reiterada no tempo10;

c) em sede judicial aplicam-se, como referência, as normas coletivas estipuladas pelos sindicatos majoritariamente (ou comparativamente mais) representativos da categoria.

Ordenamentos de pluralismo sindical, caracterizados pela acirrada concorrência na representação, podem se ajustar por uma “seleção natural” dos sujeitos mais fortes, ou seja, mais representativos, mais capazes de traduzir de forma eficaz o interesse coletivo da categoria. Nesse caso, raramente haverá a proliferação de inexpressivas organizações coletivas, destinadas a desaparecer gradualmente do horizonte dos atores sociais. Entretanto, pode acontecer que quem conduza tal processo seletivo seja a própria lei, que, para evitar excessiva fragmentação e garantir governabilidade social, estabelece critérios de seleção entre as organizações coletivas, criando critérios de “maior representatividade” sindical. Tal intervenção se justifica ainda mais quando o sindicato é chamado pelo Estado à gestão ou regulamentação “delegada” das questões laborais.11

Conforme ensina a doutrina, o critério/conceito da “maior representatividade” é considerado “conceito chave quando é usado pelo legislador como objeto de política das relações industriais, uma vez que este comporta a seleção e privilégio de um sujeito coletivo e a atribuição, ao mesmo, de um poder social coletivo especialmente qualificado pelas funções que a lei lhe atribui. Quando é transferido na dinâmica das relações de empresa, o reconhecimento de um interlocutor privilegiado implica a legitimação de um poder social capaz de condicionar também a gestão da propriedade privada”.12

Na Itália, os critérios para aferição da maior representatividade foram construídos pela jurisprudência, a qual indicou alguns índices que foram se sedimentando no tempo: número de filiados, presença intercategorial difusa, difusão territorial e, finalmente, ativa participação nas negociações coletivas.13

A partir dos anos 90 do século passado, em razão do surgimento simultâneo de casos de coexistência de diversos contratos coletivos na mesma categoria, o conceito de maior representatividade tem sido gradualmente substituído pelo conceito de sindicato

“comparativamente mais representativo”.14 Tal conceito visa ressaltar o caráter dinâmico de seleção do interlocutor privilegiado, baseado em critérios não estáticos e absolutos, mas sim mutáveis e comparáveis quanto à efetividade.15

A aferição da representatividade sindical em sistema de pluralismo sindical é importante não apenas como critério de seleção do interlocutor privilegiado para o legislador ou o Governo. Averiguar o grau de representatividade tem um valor interno ao ordenamento intersindical, uma vez que é usado como critério de admissão às negociações coletivas ou para a representação sindical na empresa.

De fato, a menção ao critério seletivo da maior representatividade foi usada, pela primeira vez, pelo Estatuto dos Trabalhadores (Lei nº 300 de 1970) no art. 19, o qual disciplina as Rappresentanze Sindacali Aziendali (RSA). Cabe aqui explicar, ainda que brevemente, a representação dos trabalhadores na empresa, principalmente sob aspecto da aferição da representatividade nesse âmbito.

É com a aprovação do Estatuto dos trabalhadores que se consolida definitivamente o direito de representação dos interesses trabalhadores nos locais de trabalho16. Essa representação constitui uma das maiores conquistas para o direito coletivo do trabalho italiano, símbolo de democracia industrial e efetividade da legislação, de promoção da atividade sindical, uma vez que permite a real interlocução paritária entre os atores sociais na empresa.

Como acenado, a instituição das RSA na empresa é prevista ao art. 19, cujo texto originário atrelava a criação destas a duas possibilidades alternativas: por meio das Confederações majoritariamente representativas17 e/ou os sindicatos a estas filiados (art. 19, let. a.) ou ao fato de ter a entidade sindical assinado a o contrato coletivo aplicado na

unidade produtiva (art. 19, let. b.). Com o referendum ab-rogatório de 1995, e a extinção da letra a) do art. 19, para criação de uma RSA é apenas necessário que seja promovida pelos representantes das organizações sindicais que assinaram a convenção coletiva ou o acordo coletivo aplicado na unidade produtiva da empresa. Cabe ressaltar que, conforme recente interpretação da Corte Constitucional, com a decisão n. 231/2013, a RSA poderá ser constituída, também, pelas organizações que simplesmente participaram da negociação coletiva, ainda que não tenham assinado a norma coletiva aplicada.

Com as mesmas prerrogativas das RSAs, porém com diferente composição, são por outro lado as Rappresentanze Sindacali Unitarie (RSU), promovidas pelas Confederações sindicais com o intuito de substituir os antigos Conselhos de Fábrica, estabelecendo que a representatividade na empresa não fosse mais paritária, sendo substituída pela representatividade determinada proporcionalmente aos votos conseguidos/obtidos na empresa por cada sindicato18. Tanto a RSA quanto a RSU constituem canais de representação – alternativos – internos à empresa. Mas se diferenciam, essencialmente, pela composição, sendo a da RSU uma composição que reflete a generalidade dos trabalhadores (sindicalizados ou não) enquanto a RSA é um canal de representação exclusivamente sindical. As RSU surgem em 1993, no Acordo Interconfederal entre CGIL, CISL e UIL (as três tradicionais maiores confederações de trabalhadores), Confindustria (maior confederação patronal da indústria) e o Governo. O Acordo de 1993, fruto do encontro tripartite, representa um dos mais altos momentos de concertação social.

Mais recentemente, em 2014, o Acordo de 1993 foi substituído pelo “Texto Único sobre Representação” (TUR), assinado entre as mesmas partes sindicais. O TUR representa documento extremamente importante para o ordenamento intersindical uma vez que regulamenta a atividade sindical como um todo. O referido acordo é dividido em três partes: a primeira é dedicada às normas sobre “medição e certificação de representação para efeitos de negociação coletiva nacional por categoria”; a segunda versa sobre “regulamentação da representação na empresa”; e, finalmente, a terceira trata da “titularidade e eficácia da negociação coletiva nacional de categoria e [em nível de] empresa”.

Especialmente com relação ao primeiro bloco de regras sobre representatividade, o TUR estabelece três parâmetros “seletivos”19 dos sujeitos habilitados a participar da negociação coletiva: 1) organizações sindicais que tenham, no mínimo, 5% de representatividade calculada segundo a média entre filiação e dado eleitoral (extraído dos votos nas eleições dos representantes na empresa); 2) que contribuam para a definição da pauta sindical; 3) que participem da comissão negociadora.

Em setembro de 2019, as partes signatárias do TUR subscreveram um acordo juntamente com órgão público da Previdência Social (INPS) e com o Ministério do Trabalho para atividade de coleta, elaboração e comunicação das informações previstas no TUR para certificação da representatividade sindical para a negociação coletiva nacional de categoria20.

Finalmente, o financiamento das organizações sindicais em um sistema pluralístico-competitivo é, tradicionalmente, de tipo espontâneo, ligado pela quase totalidade às filiações (cerca de 1% do salário). Entretanto, o sindicalismo italiano conta, também, com fontes de custeio indiretas oriundas das atividades e serviços que são desempenhados pelas entidades “parassindicais” (por exemplo, o “patronato”) que oferecem – à cidadania laboral em geral, não apenas aos filiados – serviços de assistência fiscal, acompanhamento de aposentadoria, serviços de acesso ou assistência no mercado de trabalho etc.. Tais serviços e atividades são pagos pelos usuários e recebem, também, financiamento estatal em razão do serviço social que desenvolvem.

 

 Esse artigo foi publicado no livro “Sindicato: entre a Permanência e a Mudança – Regulações e Desafios para o futuro”. Clique aqui para acessar o material completo.