Reconstruir o SUS: tarefa indispensável para um novo Brasil

Reconstruir o SUS: tarefa indispensável para um novo Brasil

Pedro Tourinho

Médico Sanitarista, Professor de Saúde da Família na PUC Campinas


Nossa história é marcada pelo flagelo da escravidão e do racismo, por uma imensa desigualdade e por uma profunda concentração de renda e de oportunidades. O século XX viu o Brasil se transformar de uma atrasada nação rural em uma imensa potência urbana e industrial, vendo também nascer uma classe trabalhadora organizada e combativa; engajada em um projeto de mudança e de inclusão social que teria profundas consequências para todo o país. Os anos 80 do século passado foram determinantes para que conteúdos que nunca haviam sido debatidos e contemplados por políticas públicas passassem a ocupar a arena pública, constituindo uma noção ampliada de cidadania que compreendia que liberdade política e econômica necessariamente deveria caminhar lado a lado com justiça e bem-estar social. Essa discussão, embalada pelos ventos da redemocratização, produziu o texto constitucional mais progressista já aprovado na história brasileira, o qual incorporou profundas inovações ao contexto institucional e ao cotidiano de milhões de brasileiros e brasileiras. A universalidade dos direitos à saúde e à educação, o direito ao amparo econômico na velhice e no adoecimento, o compromisso com a proteção dos mais vulneráveis passaram a ser objetivos concretos, amparados na lei, construídos dia após dia num grande esforço de concertação política, econômica e institucional.

Os anos que se seguiram à aprovação da Constituição Cidadã foram anos de experimentação com as mais diversas modalidades do fazer democrático. Pouco a pouco, as formas da seguridade social brasileira foram sendo desenhadas, enfrentando a cada linha recuos e contradições, evoluindo de forma heterogênea nos municípios distribuídos pelo território nacional. A construção do Sistema Único de Saúde (SUS) se constituiu como uma das mais interessantes experiências nesse campo. Um sistema ao mesmo tempo descentralizado e organizado a partir das realidades e das necessidades locais, tão díspares em um país continental como o Brasil e, ao mesmo tempo, com forte capacidade de coordenação e de indução de políticas a partir de diretrizes pactuadas nacionalmente e no âmbito dos estados.

Ao longo dos mais de 30 anos de história de sua implementação, o SUS nunca pôde contar com financiamento adequado e sempre contou com recursos humanos escassos e com diversos constrangimentos administrativos-gerenciais. Ainda assim, o sistema se estruturou de forma sólida, ampliando a cobertura assistencial em saúde de forma contínua, chegando em comunidades periféricas das grandes cidades e regiões do país que não contam com praticamente nenhuma infraestrutura e que não conhecem a presença perene de nenhuma outra política pública. O SUS e, em particular, a ampliação da cobertura de atenção primária à saúde estiveram diretamente associados com as conquistas civilizatórias da democracia brasileira que foram a redução drástica da mortalidade infantil e o aumento acelerado da expectativa de vida da população. Conquistas como o maior programa público de transplante de órgãos do planeta; uma política integral e inclusiva de enfrentamento à pandemia do HIV/AIDS e um dos maiores programas nacionais de imunização do mundo são provas da capacidade para a produção de serviços de excelência do SUS. Uma ampla parcela da sociedade, no entanto, ainda desconhece a magnitude do SUS, não compreendendo que o sistema opera oferecendo proteção e cuidado para todos os estratos sociais por meio de serviços individuais e coletivos de vigilância, como a vigilância epidemiológica e sanitária e as diversas formas de assistência, como é o caso dos serviços de urgência, os quais, em quase sua totalidade, são realizados pelo SUS.

Considerado internacionalmente como modelo, o SUS não é um projeto defendido pela totalidade da sociedade brasileira. Desde o seu nascimento, o SUS sofre os efeitos de um sistemática oposição à sua consolidação. A concepção da saúde como direito social, com acesso universal e com cuidado integral sempre foram objeto de forte discordância para setores que compreendem a saúde como um bem trivial, passível de ser adquirido de forma diferenciada entre distintos estratos sociais conforme a capacidade de compra. Para tais setores, o papel de um sistema público seria o de oferecer uma plataforma básica, limitada e restrita, permitindo ao mercado oferecer coberturas e acesso mais amplos e abrangentes conforme a capacidade de compra dos diferentes cidadãos. Um eficiente sistema universal e integral se colocaria como um concorrente direto para esse setor, comprometendo lucros e perspectivas de ganhos futuros. A ação política desses setores sempre resultou em fortes constrangimentos à implementação do sistema; cobraram um preço alto e ainda são inúmeras as deficiências da assistência pública à saúde no país. Com o advento do golpe de 2016, esses setores ganharam importante espaço na agenda nacional, passando a comandar o Ministério da Saúde e passando a avançar uma agenda que busca abertamente mudar o caráter da assistência à saúde no país.

A emenda constitucional 95, aprovada em 2016 logo após o golpe, estabelece um teto para os gastos sociais no país por um período 20 anos e inaugura um novo momento para as políticas sociais no Brasil, caracterizado pela reversão de uma tendência de mais de 20 anos de expansão e pelo estabelecimento de um horizonte de cortes, de encolhimento e de queda em coberturas e proteções. Desde a aprovação dessa emenda, o SUS já deixou de arrecadar, quando comparado aos mecanismos anteriores de financiamento do sistema, mais de 30 bilhões de reais. Isso equivale a cerca de 30 vezes o orçamento anual do SAMU, reconhecido serviço de atendimento móvel de urgência. Outras iniciativas, como o fomento pelo Ministério da Saúde do debate sobre a constituição de planos populares de saúde, com preços mais baixos e com coberturas mais limitadas se somaram à EC 95 na constituição de um projeto para o setor saúde que compreende o SUS como um braço periférico e complementar a um sistema predominantemente privado. Entre 2016 e 2021, essa agenda avançou, ao mesmo tempo em que os serviços públicos de saúde começaram a vivenciar processos acelerados de degradação das suas condições de funcionamento.

A pandemia de COVID 19 chega ao Brasil em 2020 em um momento de acelerada desorganização do sistema público de saúde. Essa desestruturação se revela rapidamente na incapacidade para a formulação de uma estratégia unificada para conter a chegada do vírus ao país; para retardar sua disseminação pelo território e para preparar e equipar profissionais e serviços para lidar com os impactos da nova doença. Esse fracasso, agravado pelo negacionismo e pela ação premeditada e coordenada do núcleo central do governo federal, que visava facilitar e acelerar a transmissão do vírus da COVID19, produziram um resultado catastrófico para o país, com centenas de milhares de mortes potencialmente evitáveis, conforme revelaram vários estudos.

Em meio ao caos e ao sofrimento generalizados, o SUS, a despeito dos boicotes promovidos pelo governo federal, cumpriu importante papel na garantia à assistência à saúde da população e foi gradativamente sendo reconhecido como principal instrumento de proteção para a vida para o povo. A campanha de vacinação contra a COVID19, mais um aspecto do combate à pandemia enfraquecido pela ação do governo federal, contribuiu fortemente para que o SUS passasse a ter seu valor reconhecido por segmentos cada vez mais amplos da sociedade. Nunca o papel e a importância do SUS foram tão evidentes para a população.

Em paralelo a essa grave crise sanitária, o país vivencia também uma severa crise política. O projeto que assume o governo a partir de 2016 e que ganha força com a vitória eleitoral de 2018, explicitamente um projeto de desconstrução do legado da Constituição de 1988, produziu grave desarranjo no tecido social brasileiro, produzindo o aumento da fome, do desemprego e da vulnerabilidade social em uma velocidade sem precedentes. O recrudescimento das condições de vida cotidianas, associado ao caráter golpista, autoritário e violento do discurso e da ação do presidente da república trazem para a cena a perspectiva de encurtamento do ciclo político conservador, criando condições para a rearticulação do campo político popular. Essas condições se fortalecem ainda mais com a restituição dos direitos políticos do ex-presidente Lula. O precoce naufrágio do golpe ultraliberal no Brasil parece cada vez mais provável.

Em que pese o alto grau de incerteza que marca todo o processo político que o país enfrenta, essa profunda mudança nas condições estabelece um desafio singular para o futuro de todo o campo que defende a democracia no país. Um novo ciclo democrático no Brasil não pode se resumir à tarefa de devolver ao universo político condições para o seu funcionamento habitual, sob pena de ter vida curta e de ser novamente destituído quando as condições políticas mudarem. A reconstrução das políticas públicas, a retomada do emprego e do trabalho e a constituição de novos patamares básicos de cidadania será fundamental para a construção de um novo consenso político que atualize o desgastado consenso de 1988 e deixe, no passado, a tragédia bolsonarista e sua agenda.

O SUS terá, nesse processo, papel importantíssimo, gozando de legitimidade social sem precedentes para, mais uma vez, se colocar na vanguarda do processo civilizatório brasileiro. Cabe a todos os protagonistas dessa renhida luta de resistência não desperdiçarem a oportunidade, garantindo condições adequadas de financiamento para o sistema, avançado no campo administrativo para a constituição de condições para o trabalho digno em saúde e, dessa forma, viabilizando mais um ciclo virtuoso de avanço na defesa do direito à vida no Brasil.